São Paulo, quinta-feira, 14 de dezembro de 1995
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Fura

OTAVIO FRIAS FILHO

Hoje é o último dia para ver o Fura dels Baus: o grupo de teatro catalão mostra um workshop com atores brasileiros no Sesc-Interlagos. Último dia é força de expressão. O público adora o Fura e o Fura adora o Brasil; assim como já vieram antes, eles voltarão, correndo o risco de terminarem como naquela piada em que um carioca diz ao outro: "Vamos mudar de calçada que lá vem o chato do Chaplin".
Nos espetáculos do Fura, movidos a megatons de rock primal, os atores aterrorizam o público, literalmente caçando espectadores, como se costuma dizer no teatro, só que a bordo de carrinhos de supermercado, empunhando serras elétricas e britadeiras. O marketing agressivo do Fura inclui guerra de vísceras e sacos de farinha jogados na platéia.
Aliás, evidentemente não há platéia; atores e público estão misturados, no escuro e em pé, numa quadra poliesportiva. O resultado, que vale tanto a pena ver como o próprio espetáculo (mas, de novo, onde fica o espetáculo?), é que as pessoas, contagiadas pelo batuque, hipnotizadas de alegria, correm como se voltassem a ser crianças num pátio de colégio. Regressão da audição, disse Adorno.
Isto não é uma crítica teatral: se fosse, seria o caso de recomendar o espetáculo por sua rara beleza e por ser uma experiência genuinamente dionisíaca. Mas será que é? O que distingue os rostos afogueados pelas estripulias do público do Fura e os de outro público, tão diverso e igual, o dos parques de diversão, do Grande Teatro da Disneylândia? Sua base comum são as emoções mais diretas e arcaicas.
Sensações de desequilíbrio físico, de surpresa visual, de som ritmado, de falso perigo etc. estão entre as mais memoráveis (e prazerosas) para qualquer criança. Tanto no caso do Fura como na Disneylândia, elas são recriadas por meios artificiais, tecnológicos -o que estabelece uma aliança simbólica entre arcaísmo e vanguarda, entre primitivo e futurista, entre animal e máquina.
Como toda aliança, ela tem um inimigo comum, entrincheirado no território que ainda separa o passado e o futuro: esse inimigo é a palavra, a razão ou a própria história. O Fura parece ter consciência tão nítida a respeito que o carro-chefe do seu repertório é um espetáculo sem texto que acontece numa Idade da Pedra tecno-pop, assolada por hordas pós-industriais.
Mas a crítica da cultura que está implícita no teatro do Fura, e resumida acima, não é nova. Ela se tornou prestigiosa com o modernismo e desde então sua influência só cresce, a ponto de se tornar o cânone da nossa época. No teatro, seu porta-voz foi Artaud, cujas concepções são seguidas à risca, desde os anos 60, Fura incluso. Imaginada para ser revolucionária, a teoria de Artaud virou um padrão acadêmico.
Essa concepção não teria perdurado se não estivesse em consonância com o espírito do nosso tempo, que é a crise da palavra e das demais formas de intermediação, superadas pelo efeito "regressivo" da tecnologia. Mas o Fura é transgressivo, alguém dirá. Sim, só que a esta altura do campeonato transgredir é como chutar portas abertas; depois do espetáculo, sobram as roupas sujas de farinha e os rostos afogueados.

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