São Paulo, sexta-feira, 15 de dezembro de 1995
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Reformas constitucionais e assistência à saúde

VICENTE AMATO NETO; JACYR PASTERNAK

É o clientelismo puro que hoje preside as ações no contexto da saúde no Brasil
VICENTE AMATO NETO e JACYR PASTERNAK
Estamos em plena época de reformas. Isso é curioso, já que a nossa Constituição cidadã, de 1988, tem muitos pontos que jamais foram regulamentados, de modo que não sabemos nem sequer qual o grau de sua eficiência. E mais curioso ainda, nas reformas em curso não se menciona quase nada em relação à área da saúde. Seguramente não podemos considerar nosso sistema, nesse campo, um sucesso brilhante e, ao que parece, devemos de fato cogitar modificações.
Começando com o exórdio, absolutamente ridículo, segundo o qual saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado. Este é o único país do mundo que considera saúde um direito, sem levar em conta que se trata de uma variável biológica, e germes, órgãos com doenças congênitas ou coisas que tais não costumam ler, nem obedecer, o Diário Oficial, além de textos jurídicos deste nosso canto do mundo, com excesso de leis e pouco respeito por elas.
O direito do cidadão, supomos, é o acesso ao sistema de saúde. A discussão que precisaria estar nas ruas e entre as forças vivas da cidadania é uma racionalização clara do sistema de saúde.
Uma definição lógica e precisa do que cabe a cada nível governamental no setor, ou seja, o que a prefeitura faz, o que o Estado executa e onde o governo federal interfere. E junto com isso, ficando implícito nessas determinações, qual o orçamento disponível e como este deve ser implementado.
Ainda partimos da ficção orçamentária-contábil que respalda a condição de merecer a saúde atendimento em todas as suas demandas, o que não só não é verdade, mas gera hipocrisias e mentiras homéricas. Digamos que alguém sofre de doença de Gaucher e necessita do mais caro dos remédios vendidos no mundo, a ceredase, gastando US$ 400 mil por ano. Nesta nação, obrigação constitucional exige que o Estado providencie o fornecimento.
Qualquer um, mesmo sendo milionário, pode argumentar que isso é obrigação do Sistema Único de Saúde, o que pelo texto da lei é mesmo, sem discriminação de condição socioeconômica.
Alguns juízes têm assim julgado, aliás. Com essa quantia é cabível vacinar populações enormes contra, por exemplo, o Haemophilus influenzae ou hepatite B, por meio de imunizantes atribuíveis à população brasileira, em geral, tornando-se viável conseguir elogiáveis vantagens.
É muito difícil, no entanto, confrontar custos e benefícios quando imagina-se que aquele indivíduo, vítima de uma doença grave, deseja contar com o fármaco que não pode comprar. Impõe-se que esse tipo de dilema, para o qual, adiantamos, não há nenhuma solução ética satisfatória, seja pelo menos discutido e resolvido de uma maneira melhor do que a tradicional utilizada nesta terra.
Sim, como uma personalidade disse, o duro para o pobre não é apenas o fato dele ser pobre, é que todos os amigos dele também são pobres e desvinculados do poder. Sim, pois o que sucede é que o cidadão que tem influência mexe-se e possui relações adequadas: o primo da tia da lavadeira do prefeito pode ser um deles, conseguindo a caríssima droga, enquanto muitos outros nem chegam perto da obtenção.
E isso ocorre sem nenhum critério; é o clientelismo puro que hoje preside as ações no contexto da saúde. O prefeito mais agressivo, o deputado da região mais pedinchão e do qual se deseja o voto ou o ministro que quer agradar algum canto do país para, por exemplo, ser senador, são elementos que garantem determinadas atenções. Os demais perdem porque a saúde perversamente faz parte da mesa de barganha entre os componentes da elite que fazem tráfico de poder, no qual o racional é o último dos contingentes a ser considerado.
Desejamos debate entre os membros do sistema de atendimento à saúde, mas não restrito só a eles. A cidadania toda precisa discutir, opinar e optar, incluindo as funções exatas do governo, da iniciativa privada e dos variados planos alternativos de assistência que operam nesse âmbito, focalizando outrossim a abrangência de cada cobertura, os esquemas que levam ao atendimento primário, secundário ou terciário, o que se deve gastar com coisas caríssimas e o que deve ser acessível a todos, como ainda os custos e benefícios de todas as contingências.
Trata-se de discussão complexa e difícil; contudo, se ela ficar restrita aos corredores de Brasília, cheios de lobistas, corporativistas e outros tipos de faunas que só atrapalham, vai nascer muita impropriedade ou, pior ainda, vai ficar como está.

VICENTE AMATO NETO, 67, infectologista, é professor titular e chefe do Departamento de Doenças Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).

JACYR PASTERNAK, 53, infectologista, é médico-assistente da Divisão de Clínica e Moléstias Infecciosas e Parasitárias do Hospital das Clínicas da USP.

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