São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 1995
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Quem tem medo das transnacionais?

RUBENS RICUPERO

Uma das maiores ironias deste fim de século é ver a China, um país nominalmente ainda comunista, converter-se no campeão absoluto dos investimentos estrangeiros, tão vilipendiados pela esquerda até passado recente.
Não pude deixar de pensar nisso na última quinta, quando apresentei à imprensa internacional, em Genebra, o relatório para 1995 sobre o investimento no mundo (World Investment Report), neste ano dedicado às "empresas transnacionais e competitividade".
O documento, que é geralmente considerado a publicação líder nesse campo, é produzido pela Divisão sobre as Empresas Transnacionais e o Investimento da Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e o Desenvolvimento (Unctad), e seu principal autor é o dr. Karl Savant.
O relatório confirma, uma vez mais, que a grande força responsável pela globalização -isto é, a construção de um espaço econômico unificado em nível planetário- continua a ser a ação das empresas transnacionais, por meio dos investimentos estrangeiros diretos (ou FDI, na sigla em inglês).
Não faz muito tempo -15 ou 20 anos atrás-, empresa transnacional era uma espécie de palavrão ou de sinistra ameaça ao bem-estar ou à independência dos países.
Hoje, a forma que vai assumindo a economia mundial do próximo milênio é crescentemente o resultado da influência de cerca de 40 mil dessas empresas -matrizes com 250 mil filiais no exterior.
Com estoque de investimentos totais de US$ 2,6 trilhões (95) e vendas globais de US$ 5,2 trilhões (92) (alcançando US$ 7 trilhões se acrescentarmos "franchising, subcontratos), o movimento das transnacionais ultrapassa amplamente o total das exportações de bens e serviços (US$ 4,9 trilhões). Estima-se, aliás, que nada menos de um terço dessas transações ocorra no interior das próprias transnacionais.
Dessa forma, torna-se cada vez mais claro que, além do seu papel clássico de possibilitar o aumento da produção e a geração de empregos, o investimento estrangeiro passou a ser uma das principais modalidades de acesso a mercados, tecnologia e financiamento, uma vez que todos esses elementos tendem a fazer parte de um pacote único.
É por essa razão que até países como a China e o Vietnã se engajaram na competição para atrair investimentos, por intermédio da liberalização de suas leis e do fornecimento de garantias em tratados internacionais.
Dois exemplos bastam para provar o ponto. Durante o período de 1991 a 1994, apenas cinco dentre 373 mudanças no regime legal sobre investimentos estrangeiros em mais de 50 países não foram no sentido da liberalização. Ao mesmo tempo, de um total de cerca de 900 tratados sobre investimentos entre 150 países, aproximadamente 60% foram concluídos a partir de 1950 e nada menos de 299 a começar de 1994.
Para ter uma idéia do que representam atualmente os fluxos de investimentos diretos, é preciso lembrar que, no corrente ano, eles atingiram, provavelmente, a soma de US$ 235 bilhões.
Uma boa parte desse total continuou a ser investido nas próprias economias avançadas (US$ 135 bilhões). Os Estados Unidos voltaram a ter a parte do leão, tanto na qualidade de fonte dos investimentos (US$ 46 bilhões) como na posição de destino dos fluxos (US$ 49 bilhões). Trata-se de panorama muito mais equilibrado do que o do Japão, por exemplo, que exportou, em 1994, US$ 18 bilhões em investimentos, mas só recebeu menos de US$ 900 milhões.
O mais encorajador das tendências recentes foi a crescente atração dos países em desenvolvimento, que conseguiram receber US$ 84 bilhões, ou 37% do total (que sobe para 44% se excluirmos os movimentos intra-europeus).
Também nessa área encontramos forte concentração. Os dez maiores países em desenvolvimento respondem por dois terços do estoque do investimento externo.
O paradoxo é que a China comunista ocupa folgada pole-position: com US$ 34 bilhões, recebeu 40% do capital investido nos países em desenvolvimento em 1994. Para o corrente ano, calcula-se que os fluxos de investimento para esses países devem ter atingido US$ 90 bilhões.
O relatório da Unctad é uma espécie de "who's who" das transnacionais, relacionando as cem gigantes (excluindo bancos) -todas baseadas em países desenvolvidos, com o petróleo, os produtos eletrônicos e os automóveis dominando as dez primeiras.
O documento introduz neste ano duas novidades. A primeira é um "índice de transnacionalidade, levando em conta as porcentagens respectivas de ativos e vendas no exterior e de empregos de estrangeiros. Um resultado curioso da aplicação do índice foi a verificação de que muitas empresas transnacionais de tamanho pequeno ou médio são mais transnacionalizadas do que as gigantes.
A segunda inovação é o "ranking" das 50 maiores transnacionais dos países em desenvolvimento, das quais a coreana Samsung é a maior em ativos totais (do tamanho da Sony) e em vendas (equivalente às da British Petroleum), e a primeira em ativos estrangeiros é a Cemex mexicana.
A primeira brasileira a aparecer na lista é a Petrobrás (sexto lugar). O Brasil comparece com dez empresas (Souza Cruz, Sadia, Brahma, Villares, Embraer, Usiminas, Aracruz, Ceval Alimentos e Hering, além da Petrobrás). A Coréia aparece com nove empresas, o México com cinco, Hong Kong com sete, Taiwan com sete.
Em nosso caso, infelizmente, essa primazia é muito mais o resultado dos investimentos do passado. Aliás, na América Latina em geral, muito do investimento estrangeiro registrado em 1994 encontra explicação nos programas de privatização.
O Brasil hiperinflacionário da fase anterior ao Plano Real nem figura na relação dos latino-americanos de maior sucesso na atração de investimento estrangeiro.
Entre nós sempre se achou que, se alcançássemos relativa estabilidade econômica, o tamanho de um mercado continental se incumbiria de garantir o interesse estrangeiro. Em parte, isso é verdade.
Agora, porém, que temos de competir com mercados de potencial gigantesco (China, Índia, Indonésia) ou economias mais estáveis (Chile) ou ligadas aos EUA (México), faríamos bem em sacudir a nossa indulgência e começar a fazer algo para atrair o investidor estrangeiro. Um bom ponto de partida seria pôr de lado o anacrônico temor em relação às empresas transnacionais. Afinal, somos já o berço do maior número dessas empresas entre os países em desenvolvimento.

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