São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 1995
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Crimes fiscais e extinção da punibilidade

MARIO LUIZ BONSAGLIA

Vem de ser aprovado pela Congresso Nacional projeto de lei que altera o Imposto de Renda das pessoas jurídicas, devendo agora ser submetido à sanção presidencial. Esse projeto traz em suas disposições finais a reintrodução da extinção da punibilidade dos delitos fiscais em caso de pagamento do débito antes da instauração do processo criminal, além de estabelecer uma condição de procedibilidade de caráter nitidamente inconstitucional.
Desde a edição da lei 8.383, de dezembro de 1991, aquele que frauda o fisco e a Previdência deixou de ter a possibilidade de vir a safar-se do processo criminal mediante o pagamento dos tributos evadidos, pagamento esse que, frise-se, somente ocorria quando descoberta a fraude pela fiscalização tributária.
A probabilidade de uma sanção penal, ainda que relativamente branda (mais provavelmente, uma condenação com sursis), representa, inequivocamente, um fator que tende a inibir essa prática socialmente predatória e impregnada de grande desvalor ético.
Já a virtual certeza de impunidade decorrente das inovações feitas agravará, sem dúvida, o quadro de sonegação existente, em detrimento inclusive dos cofres da Previdência Social, lesados por muitos empresários que deixam de recolher contribuições sociais descontadas dos salários dos seus empregados e serão igualmente beneficiados com a alteração da lei.
Com efeito, se vingar a pretendida mudança na legislação, sonegar impostos e contribuições sociais (inclusive mediante o emprego de notas fiscais frias, contas-fantasmas e outros expedientes fraudulentos), além de conduta altamente lucrativa, virtualmente não acarretará riscos penais: na improvável hipótese de a evasão vir a ser detectada pela precária estrutura de fiscalização existente, salva-se o infrator das consequências mais graves representadas pelo processo criminal, pagando -somente então- os tributos devidos ou, então, meramente procrastinando o andamento do processo administrativo-fiscal.
O questionado projeto de lei traz ainda uma outra inovação, de efeitos devastadores para a repressão criminal.
Contrariando uma regra básica do direito brasileiro, vincula, de modo indireto, a instância judicial à instância administrativa, estabelecendo que a comunicação do fato delituoso ao Ministério Público somente poderá ser encaminhada pela autoridade fiscal após o término do processo administrativo correspondente, o que implicará aguardar-se o julgamento de recursos que forem interpostos na esfera administrativa -vale dizer, na prática, somente anos após a descoberta dos fatos, quando os delitos já estarão provavelmente prescritos, e isso se a autoridade administrativa entender que o fato constitui "crime em tese.
Essa inovação, que se choca com a jurisprudência do STF, afigura-se inconstitucional, porquanto tende a vincular, retardar ou mesmo impedir a promoção da ação penal pelo Ministério Público, submetendo o titular privativo da ação penal (artigo 129, inciso 1º da CF) e, por via de consequência, o próprio juiz ao julgamento prévio e, em certos casos, definitivo das autoridades administrativo-fiscais, que, não é demais lembrar, não gozam da garantia de independência conferida aos juízes e promotores.
O projeto ainda prevê que as novas regras procedimentais incidirão sobre os processos criminais já em curso, o que implicará a ineficácia de virtualmente todos os processos judiciais ou inquéritos policiais em andamento que versem sobre delitos fiscais, em que, obviamente, a ora aventada condição de procedibilidade, por descabida e não exigida até hoje, não foi observada...
Espera-se que o Poder Executivo vete tais inovações, que, aliás, não constavam do projeto original encaminhado ao Congresso, tendo sido introduzidas por emenda acolhida pelo relator Antonio Kandir. Ainda que se entenda serem necessárias mudanças, mostra-se aconselhável antes uma ampla discussão sobre o tema -o que, no caso, não houve.

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