São Paulo, sábado, 16 de dezembro de 1995
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Sonatas exibem semântica do compositor

JOÃO BATISTA NATALI
DA REPORTAGEM LOCAL

Imaginemos que Ludwig van Beethoven (1770-1827), em lugar de compositor, tenha sido um dramaturgo. A riqueza de seu texto estaria então nas múltiplas possibilidades de entonação, na convivência paralela de muitas "verdades" de leitura.
As dez sonatas para violino e piano que ele escreveu a partir dos 27 anos constituem justamente um bom exemplo de o quanto é possível o paralelo entre a semântica do teatro e a sintaxe da música.
A pianista argentina Martha Argerich, 54, e o violinista alemão de origem russa Guidon Kremer, 48, são portadores de reconhecidos talentos. São "atores" de uma interpretação refinada e original das peças de Beethoven para seus dois instrumentos.
Essa integral em três CDs foi gravada entre dezembro de 1984 e março do ano passado. As três primeiras sonatas são dedicadas a Antonio Salieri, mestre tanto de Beethoven quanto de Schubert, a quem uma mentira de pernas pouco curtas atribui o suposto envenenamento de Mozart.
A atual gravação se soma a outras outras versões mais antigas e respeitadas das mesmas sonatas, com as duplas Itzhak Perlman e Vladimir Ashkenazy, Arthur Grumiaux e Clara Haskil, Yehudi Menuhin e Wilhelm Kempff.
Argerich e Kremer conseguem a soma importante de diferenciais de qualidade interpretativa. Eles em primeiro lugar têm um respeito quase religioso à competência com que Beethoven -a exemplo do que fizera antes dele apenas Mozart- escreve com equilíbrio as partes do violino e do piano.
Nenhum deles monopoliza a melodia para relegar o parceiro à condição de acompanhante, mesmo fora das passagens escritas em contraponto a três vozes, onde a relevância de uma das vozes (a mão direita do piano, o violino) impõe quem é momentaneamente o "dono" da harmonia.
Pode parecer mais que óbvio, mas há curiosos exemplos que demonstram justamente a dificuldade desse objetivo. Menuhin, nos anos 50, envolveu de tal maneira o então jovem Glenn Gould que lhe impôs uma leitura de doce lirismo que já na época não correspondia à concepção que o pianista canadense fazia da música.
Outro sintoma da singularidade de Arberich e Kremer reside na cumplicidade com que ambos concebem a dinâmica (graduação do som mais forte ao mais tenro) da leitura. Extraem da "Sonata nº 5" em fá maior, a "Primavera", sutilezas que por certo outros intérpretes anteriores às gravações em alta fidelidade e digitais também alcançaram (talvez Adolf Busch e Rudolf Serkin), mas que hoje nos são inaudíveis.
Um terceiro aspecto da gravação está na determinação correta dos fraseados, de modo a indicar a partir de que momento, ao longo das dez sonatas, Beethoven passou a ser ele próprio (foi então que o romantismo nasceu) e não mais um entusiasta obediente das formas herdadas de Mozart e Haydn (que implodiram, por dentro, a retórica do período clássico).
Dois exemplos: o "tema com variazioni" da primeira sonata e o "rondó" da terceira são inequivocamente mozartianos e assim o foram interpretados. O "scherzo" da quinta já é beethoveniano e Argerich -talvez um pouco mais que kremer- dá maravilhosamente conta do recado.
Por essas e outras é bem provável que os dois intérpretes tenham cometido aquilo que o mercado discográfico designa como gravação de referência.

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