São Paulo, domingo, 17 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Diolinda no pontal da fama

ARMANDO ANTENORE

Fosse um mês e meio antes, Diolinda Alves de Souza -líder dos trabalhadores sem-terra no Pontal do Paranapanema (interior paulista)- passaria despercebida. Mas naquela quarta-feira, 6 de dezembro, se encontrava em São Paulo justamente porque pretendia desfrutar da notoriedade repentina.
Pela manhã, iria fazer fotos para a Revista da Folha. À tarde, agendaria uma futura participação no "Programa Livre", do SBT. À noite, estaria mais uma vez diante das câmeras: o "Opinião Nacional", da TV Cultura, queria entrevistá-la ao vivo. No dia seguinte, conversaria com um repórter do jornal "The New York Times".
Miúda, cabelos curtíssimos, rosto quase adolescente, Diolinda, 25, ganhou a mídia por causa de uma polêmica decisão judicial. Em 30 de novembro, o juiz da comarca de Pirapozinho (SP), Darci Lopes Beraldo, determinou a prisão preventiva de quatro membros do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). O motivo: formação de quadrilha -crime que, sob a ótica do magistrado, comete quem incentiva a ocupação de propriedades alheias.
Dos quatro militantes, o mais conhecido àquela altura era o capixaba José Rainha Jr., que capitaneia os sem-terra do Pontal desde 1991. A polícia, porém, não conseguiu prendê-lo. Ele se escondeu nos arredores de Teodoro Sampaio (710 km a oeste de São Paulo), onde mora.
Outro que escapou foi Laércio Barbosa. A mesma sorte não brindou Márcio Barreto e Diolinda. Detidos, os dois seguiram para o complexo penitenciário do Carandiru (zona norte de São Paulo) e só tiveram a prisão relaxada após 17 dias.
"Quero ver meu filho"
Parlamentares e lideranças religiosas atacaram a decisão do juiz. "A democracia não admite que se tratem questões sociais como casos de polícia", argumentavam.
Com a grita, os holofotes se voltaram para Diolinda. Primeiro, porque é mulher de Rainha. Depois, porque a prenderam em casa, numa situação singela: quando cuidava do filho único, João Paulo, 2, que acabara de retornar do médico (o menino precisa retirar uma hérnia dos testículos). Finalmente, porque, enquanto permaneceu no Carandiru, dividindo os 7,65 metros quadrados da cela com uma traficante de drogas, Diolinda soube unir o discurso inflamado das esquerdas aos queixumes de mãe.
"A orientação é para que os companheiros continuem ocupando terras. A prisão de um ou outro líder não vai inibir o movimento", afirmou durante entrevista coletiva, logo que chegou à penitenciária.
Dias depois, ainda presa, se disse preocupada com João Paulo e chorou: "Quero ver meu filho." Para o garoto, escreveu um diário relatando tudo o que passou na cadeia. "Ele vai ler mais tarde e entender por que fiquei quase três semanas longe."
Adriane Galisteu
A mãe zelosa e a militante radical pareciam não existir na quarta-feira em que Diolinda saltou do táxi para pisar pela primeira vez num estúdio fotográfico.
Quem surge, agora, é a jovem discretamente vaidosa, que se mostra à vontade com a fama. Está de camiseta preta, calça jeans e tênis branco. Quase não se enfeita -usa brincos pequenos e um anel na mão direita. "Substitui a aliança de ouro que nunca tive. É feito de tocum, um coco lá do Nordeste."
Pouco antes de entrar no estúdio, pede: "Não quero maquiagem -nem batom, nem pó-de-arroz. Não gosto." Arrisca outro pedido, desta vez com ar preocupado, quando nota que os assistentes do fotógrafo trabalham descalços: "Não me mandem tirar o tênis, por favor. Meus pés são feios demais. Pés de lavrador."
Durante a sessão de fotos, nenhuma timidez. "Adriane Galisteu que se cuide", ironiza.
A mãe coruja só se manifesta horas depois, a caminho do SBT. Diolinda vê um menino de rua e comenta: "Quantos anos tem aquele garoto ali? Uns cinco? Pois o João Paulo tem dois e é do mesmo tamanho."
A faceta militante aparece logo em seguida. "Tu sabe por que não fico tímida com jornalistas e fotógrafos? Porque tenho que aproveitar a oportunidade para divulgar nossa causa. Quem está famosa não é a Diolinda. É a luta pela reforma agrária."
O mesmo tom messiânico prevalece à noite, durante a entrevista no "Opinião Nacional". Parte dos telespectadores reclama. Um deles insinua, por telefone, que Diolinda é uma farsa -faz ares de humilde e comete erros gramaticais para, um dia, pedir votos. Ela rebate: "Besteira. Nunca serei candidata a nada. Nem filiada a partido eu sou.
"Meu Pé de Laranja Lima"
Sobre "a causa, a luta", Diolinda quase não tem referências teóricas. "Uma vez, tentei ler trechos de 'O Capital', aquele livro do Karl Marx. Não entendi bulhufas. Tu pode jogar mil Karl Marx na minha cabeça que não entendo. Para tu compreender o Karl Marx, tu precisa pelo menos do segundo grau. O único livro que consegui terminar até hoje foi 'Meu Pé de Laranja Lima'. Caso tu queira mesmo saber, não sinto tanto a falta de leitura. A gente vai se formando no dia-a-dia, com a prática."
E de prática Diolinda entende. Mineira de Nanuque, se criou no interior do Espírito Santo. O pai, meeiro, "nasceu, cresceu e morreu em cima da terra." Dedicou-se principalmente à cultura do café.
Como os 11 irmãos, Diolinda passou a infância e a adolescência ajudando na roça. É a única da família que lê com fluência. Estudou até a 8ª série numa escola profissionalizante, onde aprendeu técnicas agrícolas.
Quando tinha 15 anos, os pais entraram em uma disputa de terra que acabou originando o assentamento Vale da Vitória, perto do município de São Mateus (ES). O conflito rendeu um lote para os Alves de Souza. E encantou Diolinda: "Me lembro bem daquela invasão. Eufóricas, centenas de famílias levantavam barracos na madrugada. Era panela, roupas e lona para todo o lado. Papagaio cantando, galinha piando. Uma festa."
Mal completou 18 anos, Diolinda resolveu deixar a casa dos pais para se engajar definitivamente no MST. Desde então, participou de ocupações em Pernambuco, Sergipe, Paraíba, Maranhão e Paraná -que lhe custaram três prisões, nenhuma tão longa e rumorosa quanto a quarta, no Carandiru.
Conhece bem o Brasil, mas só viajou para o exterior uma vez. No fim dos anos 80, morou 90 dias em cooperativas agrícolas de Cuba, a convite do governo local.
Hoje, diz viver dos três salários mínimos que o marido, Rainha Jr., recebe mensalmente do MST. Não paga aluguel porque mora num sobrado cedido pela Cesp (Companhia Energética de São Paulo) graças à interferência do deputado estadual Mauro Bragato (PSDB-SP), o mais votado do Pontal.
"Se o Rainha anda com ciúme do meu sucesso? Ele não admite, mas acho que sim. Não exatamente do meu sucesso. O que o incomoda é me ver tanto tempo fora de casa."

Texto Anterior: mulheres apaixonadas
Próximo Texto: as diolindas dos fazendeiros
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.