São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 1995
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Nada a dizer

OTAVIO FRIAS FILHO

Entre tantas vantagens, a principal desvantagem do fim da Guerra Fria foi ter eliminado a crítica que duas visões de mundo, opostas e hostis, exerciam uma sobre a outra. O Islã é muito fraco para substituir o comunismo nessa função de crítica; já se deixou contaminar, aliás, pelos germes da economia de mercado que cedo ou tarde vão dissolvê-lo, assim como ao que restou de comunismo -a parte política- na China.
Também desse ponto de vista, digamos, geopolítico, a frenética diversidade do que se passou a chamar de multiculturalismo oculta, sob o fulgor das aparências, uma enorme uniformidade. A mesma receita econômica é aplicada por todos os governos e todas as empresas em todos os países, onde todos os públicos reagem de forma parecida às mesmas engrenagens de mercado.
A hegemonia americana, antes relativa, passou a ser total, numa espécie de ditadura internacionalmente consentida. Na ausência de qualquer crítica, a influência econômica e militar se converte em poder linguístico, cultural. Quando se fala em cultura americana o que vem à mente são hambúrgueres e camisetas, mas essa é apenas a superfície mais epidérmica da influência.
O centro da cultura alta já se transferiu, em grande parte, para as universidades americanas, que roubaram da França a última prerrogativa que ela ainda detinha, a de ditar modas intelectuais. No âmbito da cultura popular, a atração econômica faz com que todos os caminhos levem a Roma, de modo que os Estados Unidos são o endereço final tanto de ritmos caribenhos como do novo cinema iraniano.
Os EUA passam a ser o lugar de confluência de dois legados gigantescos: a cultura erudita européia, submetida a uma revisão politicamente correta, e a cultura popular do Terceiro Mundo, desde que pasteurizada pelos critérios de competição no mercado. Nos dois casos há um nivelamento pela média, o que é mais um testemunho de que ao máximo de diversidade corresponde o máximo de uniformidade.
Daí o paradoxo da atividade criativa em qualquer país que esteja fora do circuito formado pelos EUA e seus satélites culturais, Europa e Japão. De idéia antes questionável, quase sempre tacanha, o nacionalismo cultural se tornou uma farsa, "macumba pra turista", na expressão memorável de Oswald de Andrade. Preenche-se um formato-padrão internacional com conteúdos típicos, nacionais, "problemáticos".
Dizem que ninguém jamais perdeu dinheiro por subestimar a inteligência do público americano. Mesmo esse público, intoxicado de novidades, zonzo de opções, intui o tédio mortal que o desfile das aparências procura disfarçar e pede mais e mais novidades, o que instala um círculo literalmente vicioso. Poesia romena, música afegã, dança belga, tanto faz: o importante é propagar as ilusões do exótico, as mentiras da autenticidade.
Estamos condenados a um dilema inverso ao dos anos 60, ao do Cinema Novo, por exemplo. Hoje as nossas melhores produções culturais terão de ser, forçosamente, as menos originais; as tecnicamente melhor desenvolvidas serão as mais exportáveis; quanto mais nos aproximarmos do padrão internacional, mais seremos vistos e ouvidos, mas menos teremos a dizer de novo.

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