São Paulo, quinta-feira, 21 de dezembro de 1995
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Território devoluto

ROBERTO CARDOSO ALVES

É o cúmulo! Os sem-terra há tempos invadiram o Horto Guarani, da Fepasa, em Pradópolis. Terra nobre e produtiva. Toda plantada de eucaliptos. Ato contínuo iniciaram a depredação. Derrubaram árvores para vender madeira. Queimaram outras para fazer carvão. Toras foram retiradas do local para comercialização. O Movimento dos Sem Terra colhe sementes da sementeira que não plantou e da qual se apossa. Vende a madeira da cerca que destrói. Saqueia a mata para fazer dinheiro. É como a saúva que corta e leva o alheio para casa.
No caso do Horto Guarani, a Fepasa esperneou. Entrou com um pedido de reintegração de posse. Decretada judicialmente a medida pleiteada, não pôde executá-la. Faltou-lhe força policial e militar. É claro que em virtude de ordens superiores. Inconformada com o saque dessa sua floresta, entrou com uma ação cautelar, buscando a permissão judicial para retirar sua madeira da terra que lhe pertence. Obteve, graças à independência do Judiciário, a ordem requerida. O patrimônio do povo passou a ser resguardado por força da autoridade judicial. O governo apressa-se em apossar-se das terras ditas devolutas para entregá-las ao MST. Descuida-se da posse mansa e pacífica de suas próprias terras. Permite que nossas riquezas sejam apropriadas indebitamente pelos quadrilheiros. Dois pesos e duas medidas.
E o Ibama, que não permite o corte de pragas mais grossas do que uma garrafa de cerveja nas terras dos pequeninos produtores do Vale do Ribeira, faz vistas grossas e ouvidos de mercador ao corte precoce de eucaliptos de um, dois, três anos no Horto Guarani. Por quê? Onde está a autoridade da polícia florestal e de mananciais, parte de nossa admirada Polícia Militar, que sempre prestigiei contra a invectiva das esquerdas? Onde se esconde o emblema da Polícia Florestal que mostra o leão armado de espada e incólumes sob sua proteção as matas, os lagos, a onça e a garça?
Onde as pistolas heraldicamente cruzadas? Ou a derrubada de matas só é crime ecológico quando efetivada por proprietários legítimos ou por cidadãos isolados e não-enturmados em quadrilha? Isso é grave e mostra, como parte dele integrante, o descaso, a tolerância suspeita e a cumplicidade do governo em face do descumprimento das leis, do crime organizado, da obstaculização do desenvolvimento do Pontal do Paranapanema e de regiões importantes do Estado por líderes 32 vezes processados.
Querem as autoridades estancar o investimento no campo, responsável pela produção de comida e pelo maior número de empregos no país? Onde está o Estado de Direito pelo qual as vítimas do arbítrio, Fernando, Covas, Serra e outros, inclusive eu, tanto lutamos?
Lutamos em vão? Lutamos só por nós? Não era a lei que nós queríamos? Não a queríamos para todos? Vamos perder nossa conquista maior?
É preciso que nos esforcemos ao máximo para extirpar a fome, a miséria, o analfabetismo, a doença, a injustiça que grassam pelo Brasil. Ninguém pode olhar com indiferença o estado subumano de grande parte de nosso povo, no campo como nas cidades. Ou os carentes da cidade não merecem nosso trabalho? Ou vamos permitir a invasão de casas, lojas, bancos etc.? Vamos também nos omitir diante do furto e do roubo nas cidades? É preciso lutar para estabelecermos a equidade e a justiça.
Será necessário rasgar a Constituição, afrontar a legalidade e compactuar com o crime? Deve a autoridade tolerar tudo isso, cruzar os braços colaborando com a prática do ilícito penal? É esse o preço da reforma agrária? Ela vale a dissolução do império da lei?
A reforma agrária não se faz apenas pela desapropriação. Pode-se chegar a ela pela tributação progressiva e regressiva das propriedades rurais, punindo as terras improdutivas e premiando as produtivas. Pela flexibilização das leis trabalhistas e pelo incentivo aos arrendamentos. Pela política de agrovilas que já comprovou sua eficácia entre nós, estendendo a fronteira agrícola. Em troca de que os sem-terra querem exercer o papel de chupim? Tomar a terra de quem a comprou e a faz produzir por quê? Para ficar no asfalto? Mas os italianos atravessaram o Atlântico para trabalhar o campo conosco! Os japoneses transpuseram o Pacífico!
Não vale a pena o governo prevenir o crime, proteger o direito de propriedade e realizar seus objetivos por meios não-violentos, jurídicos e pacíficos? É preciso permitir o bando? Ou há carne debaixo desse angu? Há nisso algum tempero ideológico além de retratos de Mao e de Guevara? Ademais é sempre bom lembrar que a terra não produz sozinha. É preciso o amanho, o cultivo, o adubo, a semente, as carpas, o zelo, a colheita. Ou isso tudo é de graça? De graça é revendê-la e invadir outra levando para a invasão o trator financiado pelo Banco do Brasil, a D-20, o facão, a foice, o alicate e o pé de cabra.
O que não é possível é o governo consentir com a desorganização continuada do sistema produtivo no país e a destruição do Estado de Direito.

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