São Paulo, quarta-feira, 27 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O Natal também é um convite à virtude

MARCELO COELHO

Da Equipe de Articulistas N o artigo de sexta-feira passada, falei de como o Natal se associava a quase todos os pecados capitais -a gula, obviamente, mas também a avareza, a inveja, daí por diante. Mas esqueci-me de dizer que aos pecados capitais estão associadas virtudes correspondentes. As tentações da comida e da bebida podem ser estímulo para a virtude da temperança; a avareza, um convite à caridade, e as ocasiões de ira, um florescer da paciência.
Bela virtude, a paciência, e das mais praticadas no Natal -já que as crianças têm de esperar seus presentes, e os pais têm de suportá-las enquanto isso. Kafka dizia que a impaciência é o único pecado, pois funciona como causador de todos os outros.
Justamente senti falta de um capítulo sobre a paciência no interessante livro do filósofo francês André Comte-Sponville, "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes", publicado pela Martins Fontes este ano. Na França, o livro teve mais de 500 mil exemplares vendidos, e aqui chegou a aparecer em algumas listas de best-sellers. É uma boa leitura para a passagem do ano, época em que costumamos projetar um futuro melhor até mesmo para nossos próprios instintos.
São 18 capítulos, comentando coisas como a prudência, a coragem, a justiça, a humildade, a tolerância. Comte-Sponville também inclui no livro algumas virtudes não muito reconhecidas enquanto tais: a simplicidade, o humor, a doçura, a boa-fé. Tudo vem escrito num estilo claro, entre o coloquial e o entusiástico, fazendo com que a análise de cada conceito pareça um movimentado jogo de pega-pega.
O que é, por exemplo, a doçura? Para Comte-Sponville, tem algo de feminino: é "uma coragem sem violência, uma força sem dureza, um amor sem cólera". Não se confunde com a compaixão ou com a generosidade, pois "a compaixão sofre com o sofrimento do outro, enquanto a doçura se recusa a produzi-lo ou aumentá-lo", e "a generosidade quer fazer bem ao outro, a doçura se recusa a fazer-lhe mal".
Já a misericórdia se opõe ao ódio; e, como este é triste, a misericórdia está do lado da alegria: "sem ainda ser alegre", diz Comte-Sponville, pois nesse caso é perdão, "ou já sendo alegre, e neste caso é amor". Quanto ao humor, trata-se de uma "desilusão alegre", sendo por isso "duplamente virtuoso" -enquanto desilusão, tem a ver com a lucidez e com a boa-fé; enquanto alegria, tem a ver "com o amor, e portanto com tudo".
Esses exemplos talvez sejam suficientes para dar idéia do espírito e do objetivo do livro como um todo. Cada virtude é comparada às demais, os substantivos abstratos se compõem e se desfazem como se cada frase fosse uma imagem no caleidoscópio. Não há entretanto especulação complicada; o autor se ancora no bom-senso e no uso que fazemos cotidianamente de cada conceito.
Citando um grande número de filósofos -Aristóteles, Spinoza, Montaigne, Alain são seus preferidos-, Comte-Sponville procura sempre deixar as coisas claras para o leitor comum, e de certo modo reforça, ou refina, aquilo que já sabemos. O prazer que se obtém com este livro não é exatamente o de encontrar uma "nova chance" para a ética, ou uma investigação em profundidade de seus princípios. Não é tanto o prazer de um conhecimento novo, mas sim o de uma exposição elegante, viva, sofisticada, dos conceitos morais que empregamos no dia-a-dia.
Encontramos o prazer de concordar com tudo o que ele diz. Só que não sabíamos que sabíamos tanto e tão bem... O texto flui velozmente; admiramos a capacidade do autor em organizar, diferenciar, aproximar, distinguir e confundir as virtudes todas, numa espécie de alegria da manipulação filosófica.
Por muito tempo a filosofia francesa vinha perdendo sua clareza e sua vocação humanística. Pensadores cada vez mais radicais questionavam a existência da verdade, da virtude, do homem, e até do próprio "autor", numa linguagem cada vez mais distante do leitor comum. Comte-Sponville parece retomar a velha tradição ensaística francesa como se nenhuma daquelas "revoluções" pós-estruturalistas tivesse acontecido.
Não sei se isto representa uma simples "virada" na moda filosófica, ou se é possível superar todos os impasses da filosofia contemporânea sem criticá-los de frente, e nem mesmo se esta é a intenção de Sponville.
O livro mostra, com vigor, a possibilidade de fazer um pensamento interessante a partir dos dados da experiência comum, mas daí derivam tanto sua força quanto sua fraqueza.
É que desconfio um pouco da própria sedução que este livro exerce. É como se a graça do raciocínio, resolvendo como que de improviso cada dificuldade de definição, jogando com os conceitos num estado de euforia especulativa, tivesse algo de desesperado. Uma fundamentação absoluta, pura, da moral, parece ao autor um esforço ultrapassado -foi o de Kant, a quem critica bastante. A negação completa, a crítica arrasadora da moral, ao gênero de Nietzsche, por sua vez também repugna ao autor. É num meio termo prático, sensato, que Comte-Sponville se situa. Os problemas que ele levanta, e que expõe com brilho, tendem afinal a reconfortar o leitor.
Essa atitude "reconfortante" é contudo um pouco ambígua. O livro nos reconforta à medida em que reconhece o quanto é difícil ser virtuoso, o quanto as próprias virtudes tendem a entrar em competição mútua. As definições, as frases, as citações todas se reconciliam num todo harmonioso, numa consonância de conceitos, numa partitura elegante. Mas a realidade vivida, a experiência prática, é aquela em que ninguém é virtuoso todo o tempo, nem na maior parte do tempo, nem talvez em alguns momentos do tempo. E, na verdade, Comte-Sponville é o primeiro a dizer isso -não faz outra coisa se não reconhecer, a propósito de cada virtude, sua inatingibilidade face às limitações humanas.
Este belo livro nos oferece, assim, um espetáculo edificante a ser contemplado, e ao mesmo tempo um antídoto para qualquer mal-estar que essa contemplação provoque. As virtudes são difíceis, mas é por isso mesmo que são virtudes. Têm valor moral; mas não apenas valor moral: têm também valor estético, são "excelências", emanações naturais admiráveis. Ficam assim a meio-caminho entre o eu e os outros. O livro oscila entre propor que sejamos obedientes a elas ou que simplesmente as admiremos quando as virmos, em nós ou nos outros.
É nesse misto de exigência moral e de descompromisso, de rigorismo e de complacência, de ética e de estética que faz do "Pequeno Tratado das Grandes Virtudes" um livro tão persuasivo. À crise dos valores morais, responde que este continuam vigentes, como sempre estiveram; só que não são bem assunto nosso, já que, como sabemos, ninguém é de ferro...
Uma astuciosa modéstia, portanto, estaria por trás desse "pequeno tratado": a de apostar na falibilidade humana, e na flexibilidade dos conceitos, para produzir um roteiro moral preciso e exigente. O livro é tão cristalino como água mineral; mas traz com isso o risco de ser um tanto inócuo como medicamento.

Texto Anterior: "Big" brinca com o mundo
Próximo Texto: Dean Martin foi artista versátil e plebeu
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.