São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 1995
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Candidato a vice-rei do Brasil?

PAULO NOGUEIRA BATISTA JR.

Não sei se vocês sabem, mas nos últimos anos os embaixadores dos EUA em Buenos Aires adquiriram a alcunha de "vice-reis da Argentina". Alusão às suas constantes e muitas vezes ostensivas interferências nos assuntos argentinos e à subserviência do governo Menem, um dos mais inermes da história daquele país.
A subserviência se manifesta na política externa, que tem sido de virtual alinhamento automático ao Departamento de Estado. Aparece também na política econômica, cujo eixo central, o chamado Plano Cavallo, consiste essencialmente na subordinação da moeda argentina ao dólar, por meio da adoção do regime monetário e cambial que vigorava nas colônias da Inglaterra e de outras potências européias.
Apesar dos esforços de certos setores, o Brasil não chegou a esse ponto. Recentemente, entretanto, o embaixador dos EUA em Brasília deu sinais de que não se conforma com o papel menos exaltado ou menos ostensivo que vem desempenhando. Pelo menos é o que sugere sua entrevista sobre o projeto Sivam ao "Jornal do Brasil" na semana passada. (Como é remota a semana passada! Talvez o leitor já nem se lembre bem do assunto. Em todo caso, vamos lá.)
Segundo o embaixador, "haverá um impacto nas relações bilaterais" se o projeto Sivam for cancelado. Numa daquelas observações falsamente acacianas, esclareceu que "o projeto é brasileiro, e não americano". E acrescentou: "No futuro, Brasil e EUA sairão lucrando com o Sivam, sobretudo na proteção ao meio ambiente e no combate ao narcotráfico."
A esta altura do campeonato, até os mais desavisados já desconfiam que o interesse americano no Sivam é duplo. Por um lado, há considerações comerciais. Ao contrário do que imaginam os adeptos mais ingênuos da "globalização" e do fim das fronteiras, o Estado nacional americano, assim como o das demais nações que se prezam, promove ativamente os interesses das suas "transnacionais".
Mas há também considerações estratégicas. Esse segundo aspecto nem sempre recebeu a devida atenção no debate recente sobre o tema, dada a eterna propensão dos nossos meios de comunicação a enfatizar os aspectos pitorescos e menos essenciais.
Não me parece que tenha recebido o merecido destaque o alerta dado pelo brigadeiro da reserva Ivan Frota em carta de 14 de abril ao presidente Fernando Henrique Cardoso. Trechos da carta foram publicados pela Folha de S.Paulo no início de dezembro. O brigadeiro, que coordenou os primeiros estudos para um sistema de controle do espaço aéreo da Amazônia no início dos anos 90, escreveu ao presidente nos seguintes termos:
"Se esse contrato for assinado, estaremos oferecendo a um determinado país -os Estados Unidos- um instrumento de valor estratégico incomensurável, não gratuitamente, mas, o que é pior e profundamente irônico, pagando uma astronômica quantia (financiada em condições atrativas pelo país interessado), superior a US$ 1,3 bilhão (excluídos os juros futuros). Tal fato dará a esse país acesso global a toda a região amazônica sul-americana para acompanhamento eletrônico permanente de elementos vitais para seu controle (...)."
Marquem bem essas palavras: estaremos entregando o controle das informações sobre a Amazônia não de graça, mas, o que é pior e profundamente irônico, assumindo obrigações financeiras para executar um projeto que muitos consideram excessivamente ambicioso e que ficará a cargo, de forma global e integrada, de uma empresa americana, com fortes vínculos com o governo dos EUA. E tudo isso -outra ironia- em nome da soberania nacional...
Segundo o brigadeiro Frota, a concepção original do projeto, mais modesta, previa implantação gradativa, com aproveitamento das possibilidades nacionais (mesmo que não fossem as mais sofisticadas do ponto de vista tecnológico) e gastos de US$ 500 milhões a US$ 600 milhões em dez anos.
Os defensores do projeto na sua forma atual enchem a boca para falar das condições financeiras oferecidas pelo Eximbank. É o velho fascínio nacional pelo endividamento externo, recurso enganosamente fácil que acaba provocando grandes dores de cabeça e comprometendo a autonomia do país.
George Washington escreveu certa vez que "é loucura uma nação esperar favores desinteressados de outra; tudo quanto uma nação recebe a esse título terá de pagar com uma parte da sua independência. Não pode haver maior erro do que esperar favores reais de uma nação a outra".
É esse o tipo de conselho americano que o Brasil deveria seguir.

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