São Paulo, quinta-feira, 28 de dezembro de 1995
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Sivam: vigiar não é punir

HÉCTOR LUIS SAINT-PIERRE

O sistema destinado a vigiar nossa fronteira norte, a controlar o tráfego aéreo na Amazônia e garantir a tranquilidade da navegação fluvial e aérea na região até agora só resultou em turbulência éticas, jurídicas e políticas que conturbaram o vôo tucano do governo.
Aquele dispositivo que se destinava a garantir a soberania brasileira por enquanto conseguiu manter em 85% (segundo dados da Folha) a porcentagem de paulistanos que acreditam que há corrupção no governo FHC.
Qualquer quantia de dinheiro é pouca quando a soberania nacional está em jogo, mas a pior ameaça que atualmente paira sobre a soberania é a corrupção. Meter a mão no dinheiro público é o pior atentado contra a soberania nacional. Em qualquer país a corrupção é crime de lesa-pátria, mas num país em que crianças morrem de fome a corrupção é também um crime de lesa-humanidade.
Soberania é, em primeiro lugar, soberania política, que significa poder decidir em última instância. Decidir significa poder escolher, o que só é possível conhecendo as alternativas, mas o que escolhemos para defender a Amazônia? Decidimos? Soberania é também capacitação científico-tecnológica, é a possibilidade de resolver problemas desenvolvendo soluções de maneira autônoma. Mas em que sentido o país cuida de sua soberania importando tecnologia "caixa preta"?
É interessante notar como, por meio da retórica política, tudo pode ser reconstruído. Assim, no caso do "grampo", a destreza política exagera a questão do procedimento, mas evita o debate sobre o mérito das conversas gravadas (sobretudo as presidenciais, ora negadas ora confirmadas). Indiscutivelmente a escuta constitui um atropelo à garantia da privacidade. O problema é que parece haver uma certa tendência política a tornar privado tudo quanto houver de proveitoso na esfera pública.
Do ponto de vista jurídico a informação obtida pela escuta pode não ter qualquer valor probatório, mas do ponto de vista político tem um peso ético insuportavelmente inquestionável. São apenas indícios, mas que acumulam suspeitas de corrupção sobre um governo que está frustrando as expectativas de moralização da coisa pública.
Fala-se a respeito da necessidade do sigilo que não permitiu licitação pública, mas nada se diz sobre os 16 países que receberam informação confidencial sobre o sistema para apresentar suas propostas. O sigilo serve então apenas para afastar a iniciativa nacional, confirmando que para alguns ainda o pior inimigo do Brasil são os próprios brasileiros.
Por sua vez, no caso do contrato, a retórica política inverte as prioridades: gasta-se prosa em justificar o mérito do Sivam, mas nega-se a discussão sobre o procedimento do contrato. Aduzem que "devemos proteger a Amazônia" ou ainda que "necessitamos garantir a integridade territorial", mas fundamentalmente "a soberania nacional deve ser preservada". Quem poderia desconhecer a nobreza desses argumentos? Mas esse sistema realmente protege a Amazônia? Garante a integridade do território nacional? Preserva nossa soberania?
Muito se diz a respeito, mas pouco se informa. Parece que o procedimento decisório do governo militar foi transformado "mutatis mutandi" no não menos autoritário "fato consumado". Em realidade o Sivam é apenas uma parte do projeto integrado de defesa amazônica, o Sistema de Proteção da Amazônia (Sipam). Dentro desse projeto a função do Sivam é coletar, processar e organizar informações, cobrindo uma área de 5,2 milhões de km2.
O Sivam representa os olhos e ouvidos do Sipam. Mas de que serve saber quantos aviões ingressam ilegalmente no país se não temos condições de interceptá-los? Não discuto aqui o valor estatístico que possa ter essa informação, mas, nesse caso, "vigiar não é punir".
De que adianta saber que a Amazônia está queimando se não temos meios técnicos de apagar o fogo? Se as queimadas, dentro do Estado de São Paulo, nem sempre são controladas, que dizer na mata amazônica? Poderíamos detectar latifundiários derrubando com invejável sistemática o pulmão do planeta, mas sem fiscalização próxima e sem vontade política de intervir, seria apenas uma curiosidade mórbida.
O poder de detecção e informação do Sivam permitirá perceber as terras ianomamis sendo invadidas, mas sem uma Funai forte e atuante na região nada impedirá que continue a ocorrer. É possível ver, em cores vivíssimas, como os garimpeiros estão zoneando a bacia do Amazonas, mas sem uma estrutura judiciária na região nos restará a indignação em cores.
Mas não precisamos preocupar-nos, tudo está sob controle, está previsto posto da Funai, do Ibama, das três Forças, postos de saúde, delegacias das polícias e estrutura judiciária para atender a região. Quem viver verá como, depois que tudo fique montado, aqueles US$ 1,4 bilhão parecerão gorjeta (no bom sentido, claro).
Só há pouco solicitaram à comunidade científica, especificamente à SBPC, organismo acima de suspeitas, uma avaliação técnica do projeto. Embora tardio, talvez seja esse o caminho correto. Ainda assim a decisão política sobre a necessidade estratégica e a prioridade política caberá ao Congresso, mas se este não montar uma CPI para esclarecer todos os meandros desse confuso episódio não estará à altura moral que aquela decisão exige.
Rousseau dizia que a "coisa pública" é pública ou não é coisa nenhuma; aqui parece não ser nem uma coisa nem a outra, mas apenas "coisa podre".

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