São Paulo, sexta-feira, 29 de dezembro de 1995
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O ano em que 1988 começou a acabar

MAILSON DA NÓBREGA

No ano que termina, iniciou-se o aguardado processo de ampla mudança da Constituição de 1988. Em certos momentos, julguei que isso demoraria muito a acontecer. A agenda de reformas, gigantesca, enfrentava a baixa eficiência decisória do sistema político.
Meu pessimismo aumentou com o fracasso da revisão constitucional de 1993. Conseguiu-se apenas reduzir o mandato do presidente da República para quatro anos (sem reeleição) e a aprovação de um dispositivo transitório: o Fundo Social de Emergência.
Fui um dos primeiros críticos da nova Constituição. Meu posto de observação como ministro da Fazenda à época de sua elaboração me permitia divisar seus exageros: os passos rumo ao passado na área econômica e as decisões que agravavam o já doente regime fiscal.
O redistributivismo ingênuo e a geração de um federalismo fiscal torto inviabilizaram a gestão orçamentária, reduzindo a margem de manobra para enfrentar a situação inflacionária. Inerme, sem base parlamentar e gerindo uma complexa transição para a democracia, restava ao governo gritar.
Matérias de leis e portarias viraram mandamento constitucional, inibindo as transformações sociais, especialmente na área trabalhista. O poder das estatais criou novos monopólios. O preconceito contra o capital estrangeiro gerou restrições incríveis em plena era da globalização da economia.
As regras salariais para o setor público e a autonomia do Legislativo para fixar seus próprios salários e os do Judiciário permitiram o maior festival de privilégios da história do país. Funcionários passaram a ganhar o dobro, o triplo e até dez vezes mais do que o presidente da República.
O serviço público se enrijeceu com o regime jurídico único, uma volta à década de 30. A Previdência Social tomou o rumo da falência, com benefícios sem cobertura na arrecadação. O Brasil se tornou o primeiro país do mundo a inscrever em sua Constituição um limite à taxa de juros reais.
Hoje, estou convencido de que dificilmente poderia ter sido diferente. Parecia temerário reunir uma Assembléia constituinte num momento de crise econômica, grande desigualdade social e ausência de partidos com capacidade de balizar diretrizes e programas. Mas a convocação era imperativa diante das expectativas criadas com o fim do regime militar.
Era preciso refazer as instituições da democracia. Além disso, em meio à eliminação do autoritarismo político, da centralização excessiva de poderes da União e das restrições ao sindicalismo, os constituintes foram também movidos pelo sonho de produzir justiça social com as próprias mãos, via dispositivos da Constituição.
Havia, ainda, dois movimentos causadores de distorções. Primeiro, a maniqueísta visão pela qual tudo do período militar era mau e o que surgisse da nova ordem era bom. Segundo, o uso da Assembléia constituinte como trampolim para as campanhas de 1989, notadamente a corrida presidencial.
O Brasil tem pago um elevado preço pela farra democrática de 1988. O processo hiperinflacionário por ela impulsionado nos levou à beira da desorganização econômica e social. A concentração de renda piorou sob a bandeira do avanço social, um dos grandes paradoxos da nova Constituição.
Felizmente, as lições da crise e as reflexões do ambiente de liberdade produziram um rápido amadurecimento na sociedade brasileira. Já no início desta década, as pesquisas de opinião sinalizavam as mudanças. A embriaguez de 1988 dava lugar a posições lúcidas em favor das reformas.
O Plano Real acelerou o processo e elegeu Fernando Henrique Cardoso, cuja habilidade política detonou o início da revisão dos equívocos de 1988. A forte combinação de fatores pró-reformas permitiu que elas começassem mesmo antes das esperadas melhorias no sistema político.
Apesar das vitórias, a estrada ainda será longa e tortuosa. Precisaremos de mais alguns ciclos eleitorais para completar a obra ciclópica de rever integralmente a Constituição. Parece não haver dúvida, contudo, de que este ano que termina é o divisor de águas. 1988 começou a acabar mais cedo do que se imaginava. Graças a Deus.

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