São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
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Assim é, se lhe parece

LUIZ GONZAGA BELLUZZO

O noticiário econômico de fim de ano fez-me lembrar de uma história verídica e inquietante. Cida, uma exímia especialista em copa, cozinha e afazeres domésticos, dedicava-se, num final de tarde, a reexaminar a limpeza dos vidros das janelas. Presenciou, então, um grave acidente de trânsito, com direito a vítimas, aglomeração de populares, sirenes e tudo o mais.
A patroa chegou quando o episódio se desvanecia. Curiosa, pediu um relatório da ocorrência. A narrativa foi extensa e minuciosa.
Dia seguinte: café na mesa, a patroa pronta para sair, dona Cida precipita-se da cozinha: "Via reportagem do acidente na televisão; tudo o que eu contei para a senhora estava errado.
Conclusão: a presença massacrante dos meios de comunicação de massas cria uma esfera de percepção que se autonomiza diante da experiência individual ou coletiva e, em muitas circunstâncias, a submete quase completamente.
Quase, mas não completamente. Dentro de limites, a versão oficial pode predominar sobre a experiência concreta dos indivíduos, mas quando a desconexão entre o que é narrado e o que acontece se torna absurda, não há o que possa segurar a reversão de expectativas.
O presidente Fernando Henrique vem reclamando, com razão, o reconhecimento dos benefícios auferidos pelos mais pobres depois da queda da inflação. O salário já magro deixou de desaparecer bem antes do fim do mês. A queda dos preços agrícolas ajudou a fortalecer o poder de compra do salário.
Na versão imaginativa de um simpático governador tucano, essa é a prova de que, no Real, "enquanto os pobres comem mais e melhor, os banqueiros quebram.
Os banqueiros podem quebrar por muitas razões. Entre tantas, salienta-se a impossibilidade de receber os créditos que concederam, num período de avaliações otimistas, às empresas e às famílias.
É possível demonstrar que numa economia capitalista nem sempre as desgraças dos banqueiros (ou quedas violentas de preços) auguram felicidades para os mais pobres, sobretudo se os juros altos, a penúria dos devedores e a contração do crédito determinam a redução da atividade econômica e o aumento do desemprego.
Avaliações um pouco mais profundas sobre o estado d'alma da população menos favorecida revelam que a sensação agradável provocada pela queda da inflação está prestes a ceder diante do desconforto representado pela ameaça de desemprego e pela dureza das novas negociações salariais.
Essa é a realidade que se desenvolve sob o véu nada diáfano da opinião oficial, que repete incessantemente: a economia vai bem. Por enquanto, os que vão mal relutam em acreditar no que vivem e sentem.

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