São Paulo, domingo, 31 de dezembro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O caso Universal e a mídia

LUÍS NASSIF

A campanha para cassar as concessões de rádio e televisão da Igreja Universal do Reino de Deus merece reflexões um pouco mais aprofundadas.
Por mais que choquem as cenas do vídeo (nas quais Edir Macedo aparece orientando seus bispos sobre como arrecadar mais dinheiro), a campanha que se desaba sobre a organização se deve muito menos ao fato de explorar o lúmpen do que o de ter invadido duas áreas de domínio privativo dos "brancos": as comunicações e o mercado institucional de fé.
Apesar de agente relevante do processo de modernização da economia, a mídia -especialmente a eletrônica- ainda é terreno que não foi suficientemente desbastado pela competição. Sistemas viciados de concessão, reservas de mercado (proíbe-se capital estrangeiro no setor), cumplicidade histórica com o poder político impediriam o arejamento e a competição na área.
Independentemente da maior ou menor razão que se tenha nas críticas contra a Universal, ocorreu o mesmo com os irmãos Martinez, do Paraná, com o paulista Hamilton Lucas de Oliveira, do IBF, e com o banqueiro Andrade Vieira, do Bamerindus, quando tentaram entrar no setor.
Na década passada, o empresário Silvio Santos sofreu campanha semelhante. Teve de enfrentar acusações reiteradas, deboches e críticas abertas contra seu estilo popularesco, até se impor e ser aceito pelo grande clube dos brancos.
Caso Globo
A falta de competição foi ruim para o país e para a própria mídia. Tome-se o caso das Organizações Globo. Apesar do maniqueísmo de se considerá-la fruto da ditadura, a razão de seu sucesso estrondoso foi a visão estratégica de seu fundador, os riscos que correu para colocá-la no ar (em 1968, Roberto Marinho chegou a oferecer a investidores metade da Globo por US$ 5 milhões) e o fato de ter conferido à criatividade da Atlântida (da qual é legítima herdeira) um padrão técnico de nível internacional -quando ainda não era um quase monopólio.
Ainda nos anos 70, a Globo era a única empresa brasileira que dispunha de um produto em condições de competir internacionalmente. Já era também uma das raras emissoras no mundo com rede internacional de correspondentes. Ainda hoje, o padrão visual das novelas globais é imensamente superior ao das séries de TV americanas. E a capacidade de seu jornalismo de cobrir um país com dimensões continentais nada fica a dever às principais redes americanas.
Com seu padrão de novelas, shows e notícias, fundada na tradição pictórica e musical da cultura brasileira, a empresa poderia ter se convertido em uma das líderes mundiais do setor de audiovisual -o que mais cresceu nas últimas décadas-, investido em parques temáticos, ter sido a grande propulsora da música brasileira no mercado internacional de vídeo e som e por aí afora.
No entanto, a facilidade com que faturava no mercado interno -justamente pela falta de competição-, tornou-a acomodada. Depois de algumas tentativas de conquistar o mundo, voltou-se para si própria. Passou a dedicar muito mais energia em administrar seu poder político do que em explorar sua criatividade.
O mesmo vale para outras emissoras. Não fossem as restrições legais e um mercado interno acomodado, a Bandeirantes teria aproveitado seu know-how esportivo para alianças internacionais, que a transformariam em grande provedora mundial do mais popular dos esportes: o futebol.
A falta de competição prejudicou a Globo -e o país-, do mesmo modo que, na virada da República, matou a criatividade dos cafeicultores paulistas e de todos os setores que, depois de vencedores, quiseram se escudar no poder político recém-conquistado para impedir a competição.
Pior sem ela
É por aí que deve ser analisada a questão da Universal do Reino de Deus. Deve-se criticar seus métodos de arrecadação de dinheiro. Mas são ridículas as tentativas de apontá-la como superpoder ou superinimigo.
Trata-se de uma organização aguerrida que, como todo novo setor, recorreu a um comportamento beligerante para conquistar espaço político. Mas está longe de se constituir em uma seita fundamentalista.
Se não for destruída pela atual campanha, acontecerá com ela o mesmo que com os sindicalistas do ABC, com a CUT e com os trabalhadores rurais. À medida que seu espaço foi sendo reconhecido, cada um desses setores se civilizou e passou a praticar políticas de alianças -base de qualquer regime democrático.
No momento, a Record é a única rede nova que está investindo e tem potencial para competir no mercado e romper a atual estratificação do setor.
A Manchete cai pelas tabelas. Sem o banqueiro Andrade Vieira, a CNT terá dificuldades cada vez maiores em ampliar sua rede. O poder restaurador das novas tecnologias -permitindo o aparecimento de novos grupos dinâmicos- pode ter sido capado pelo decreto cartelizador do Ministério das Comunicações, que conferiu a cada distribuidora o poder de escolher os canais que irá distribuir -decisão que contrasta vivamente com o discurso do ministro Sérgio Motta.
Se a Record for inviabilizada, dificilmente esse quadro de quase monopólio será revertido.
A alternativa Universal pode ser ruim. Sem alternativas, será pior.

Texto Anterior: Mitos econômicos foram abalados em 95
Próximo Texto: Feliz 1996, mesmo
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.