São Paulo, quinta-feira, 2 de fevereiro de 1995
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Ator de cinema é adorado como santo na Índia

LÚCIA NAGIB
ENVIADA ESPECIAL A PUNE

Em Pune, a 165 km de Bombaim, num pequeno templo hindu do século 18, os fiéis se prostram não apenas diante dos deuses mitológicos, como a escultura imponente e colorida de Ganesh, o bebê com cabeça de elefante, filho de Shiva e Parvati. Igual atenção merece uma pintura primitiva de Tukaram, santo popular do Estado de Maharashtra.
O curioso é que Tukaram encontra-se retratado com o rosto de Vishnupant Pagnis, ator indiano celebrizado por sua interpretação no papel principal de "Sant Tukaram", filme de 1936, dirigido pela dupla Damle e Fattelal. Essa interferência do cinema em práticas cotidianas e religiosas não é sintoma significativo de como o cinema está entranhado na vida indiana.
A própria cidade de Pune, hoje com cerca de 2 milhões de habitantes, se construiu em boa parte em torno do cinema. Além de abrigar a Cinemateca Nacional da Índia, com o maior acervo cinematográfico do país, e o importante Instituto de Cinema e Televisão, Pune foi, entre os anos 30 e 50, a sede da produtora Prabhat, na época dona do mais amplo e bem equipado estúdio da Índia.
Beneficiada por uma política hábil de distribuição, a Prabhat popularizou rapidamente diretores como Shantaram, além de inúmeros atores e compositores musicais. E dentre os gêneros que desenvolveu estavam os filmes de santos, sendo "Sant Tukaram" o pioneiro deles e o primeiro filme indiano a ser exibido no exterior, conquistando um prêmio no festival de Veneza em 1937.
Compositor e cantor do século 17, o verdadeiro São Tukaram se notabilizou pelo desprendimento e a renúncia de seus poucos bens em favor dos pobres. Teve também a ousadia de abandonar o sânscrito oficial da corte, compondo seus versos religiosos em ritmos vernaculistas. Perseguido pela casta dominante (brâmane), tornou-se um ídolo das massas (as castas inferiores e os "intocáveis"), que lhe atribuíam poderes milagrosos.
Pagnis, também cantor e instrumentista, alcançou uma interpretação tão convincente do santo, que passou a ser confundido com ele. Sua performance foi ainda ajudada pela qualidade das canções, compostas para o filme por Keshavrao Bhole. Fiel ao estilo do verdadeiro Tukaram, Bhole conseguiu enganar mesmo os estudiosos, que tomaram algumas de suas peças por obras originais do santo, até então desconhecidas.
Para o público, parece não ter havido dúvidas: Pagnis era a encarnação presente do velho santo. Tal reação se viu, naturalmente, estimulada pela atmosfera exaltada de então, já que Ghandi, líder ao mesmo tempo político e místico dos oprimidos, encontrava-se na prisão. Para o ator, no entanto, foi a própria celebridade a sua prisão. Adorado como um santo milagroso e requisitado a todo momento para apresentações com as vestes de Tukaram, Pagnis só conseguiu novos papéis em poucos filmes de santos, antes de falecer em 1943.
Hoje, quase 60 anos após "Sant Tukaram", parecem ter se apagado todas as diferenças entre Pagnis e o santo verdadeiro. Mesmo na casa de A.V. Damle, em Pune, que comercializa em vídeo os filmes dirigidos pelo pai e outros da Prabhat, é novamente um quadro de Tukaram com o rosto de Pagnis que se encontra na entrada, adornado com uma guirlanda de flores.

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