São Paulo, quinta-feira, 2 de fevereiro de 1995
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É proibido fumar

OTAVIO FRIAS FILHO

Maluf parece decidido a "modernizar" São Paulo na base da porrada. O que entusiasmou o antitabagismo do prefeito foi o inesperado sucesso da sua última providência inconstitucional, a dos cintos de segurança.
São Paulo amanheceu uma Estocolmo, ao menos em matéria de cintos de segurança, os cidadãos ciosos de sua salvaguarda como se não pudessem ser estripados na próxima esquina. "Life is cheap in Casablanca."
Segurança é algo sempre proporcional ao risco. Ninguém toma seu remédio na hora certa quando o avião está em chamas. Esse é o ridículo do hábito, de resto aconselhável, que acabamos contraindo para evitar uma multa elevada.
Jânio Quadros, aquele romântico incurável, preferia Londres; mandou circularem ônibus de dois andares, pintados de vermelho, que tiveram de ser modificados porque raspavam no teto dos nossos túneis terceiro-mundo.
Para o metálico Maluf o modelo só poderia ser americano; talvez Ed Koch, histrião populista que foi prefeito de Nova York e que há tempos, Maluf já prefeito pela segunda vez, veio cantar na nossa freguesia.
Essas "modernizações" sempre lembram "Malícia Negra", romance do escritor inglês Evelyn Waugh. Nesse livro, um jovem africano, educado na Inglaterra, vira ditador de sua Uganda e decide modernizá-la "duela a quien duela".
Os habitantes, a miséria, a própria natureza no entanto se insurgem contra as novidades: o mato engole as estradas de ferro mal os dormentes são dispostos; moscas e gafanhotos voejam sobre menus caligrafados em francês.
Não é igual com os nossos restaurantes? Munido das melhores intenções, um sujeito resolve montar um bistrô normando, digamos, no Itaim. Capricha em cada detalhe, importa de tudo, risca um cordão sanitário em torno do elemento nativo.
Mas o clima não é o mesmo, falta a fileira de antepassados normandos e, mais alarmante, faltam ingredientes; logo um Severino (custos, custos) toma o poder na cozinha. Em três meses o ponto se torna uma simpática churrascaria onde se podem ouvir guarânias.
Idéias fora do lugar, como esclareceu para sempre o crítico literário Roberto Schwarz, ao explicar nosso maior escritor. Na novaiorquite galopante de Maluf podemos distinguir montanhas de idéias fora do lugar.
Desde logo o complexo de inferioridade de todo paulista, que é o Rio. Enquanto os cariocas mergulham no inferno diante de cujas portas até o Exército abandona toda esperança, os paulistanos afivelam cintos e apagam cigarros, com destino a NYC.
Procuram dar o exemplo, caipira ou bandeirante, agora que voltaram ao poder pela primeira vez desde Washington Luís. Deveriam é pagar um Imposto Paulista Sobre os Erros do Governo (IPEG), a ser cobrado em cada vacilo de FHC.
Mas o que estamos tentando esconder e mostrar, além da nossa dualidade mórbida, do nosso dilaceramento entre Uganda e América? De onde vem tanta inferioridade, ou tanto pesar pelo destino abandonado, como uma Transamazônica, ao meio?
Pode ser metainferioridade, mas quem começou foram os portugueses. Herdamos uma inferioridade que é nossa, mas foi antes deles, com sua "vã glória de mandar", a ejaculação precoce, como dizem, da sua civilização, já obsoleta mesmo quando ainda pioneira.
Enquanto não enfrentarmos o trauma da maneira mais radical, parar de fumar e apertar cintos só fará bem à nossa saúde física.

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