São Paulo, domingo, 5 de fevereiro de 1995
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DARCY, O BRASILEIRO

MARCOS AUGUSTO GONÇALVES
EDITOR DA REVISTA DA FOLHA

Folha - Como era o ambiente na Universidade de São Paulo?
Darcy - A escola tinha um grupo forte. Estavam por lá o Lévi-Strauss e o Radcliffe Brown (sociólogo inglês, 1881-1955), as duas maiores figuras mundiais da antropologia. Foi, portanto, um curso da mais alta qualidade. São Paulo foi que me catapultou. Se eu tivesse ficado em qualquer outro lugar do Brasil, não teria optado por ir para o mato, viver com os índios. São Paulo me deu ideais científicos.
Folha - O sr. conheceu Mário de Andrade?
Darcy - Tenho um caso curioso com ele. O paulista mais interessado em etnologia, o mais inteligente e vivo, o que eu mais admirava, era o Mário de Andrade. Um dia, marquei um encontro com ele, na livraria Jaraguá, na rua Marconi. Era uma livraria com casa de chá. Estava me preparando para a pesquisa de campo, tinha muitas perguntas a fazer e muito o que ouvir. Cheguei muito entusiasmado, mas para minha decepção, Mário estava sentado com dois inimigos: Germinal Feijó e Paulo Emílio Salles Gomes. Dois trotskistas. Os comunistas eram proibidos de falar com trotskistas. Eu tinha raiva de trotskistas. Depois, o Paulo Emílio veio a ser grande amigo meu, me ajudou a construir a Universidade de Brasília. Mas naquela fase eu tinha raiva. E acabei não falando com o Mário, que era a pessoa com quem eu mais queria ter falado. Logo depois ele morreu.
Folha - Quem mais o influenciou na época?
Darcy - Havia um professor alemão, Herbert Baldus. Ele teve muita influência na minha formação. Foi ele quem me empurrou para a carreira de etnólogo. Era um alemão atípico. Passou a Segunda Guerra em São Paulo. Era poeta.
Folha - O sr. teve contato nessa época com o Lévi-Strauss?
Darcy - Muito longínquo. Assisti conferências. O Baldus foi mais importante, inclusive para outros colegas, como o Florestan Fernandes. Ele nos empurrava para a pesquisa de campo.
Folha - O sr. já tinha interesse por Gilberto Freyre?
Darcy - Tinha. Toda a esquerda era muito contra o Gilberto. Falavam muito mal dele. Eu comecei a desconfiar que alguma coisa estava podre, porque "Casa Grande e Senzala" e "Sobrados e Mocambos" me encantaram. Eu reconheci logo que eram livros muito melhores do que "Os Sertões" e que tudo aquilo com o Gilberto era sectarismo. Mas ele era uma peça reacionaríssima. "Casa Grande e Senzala" é o ponto de vista da casa grande. Fala do negro dentro de casa, do negro fiel, mas não fala do negro de massa. Só no último parágrafo do livro ele fala que há também os negros no eito, que quando morrem são jogados na praia para urubu pinicar. O livro tem muita casa grande e pouca senzala.
Isso me inspirou um pouco para o livro que faço agora, que está ligado à necessidade de uma antropologia da sociedade brasileira, que não tenha uma visão de classe tão estreita quanto a do livro do Gilberto. Eu vim a conhecê-lo já formado, já professor, no Rio. O Anísio Teixeira, o homem mais inteligente que eu conheci, que me levou depois para a área da educação, me convidou para uma mesa em homenagem ao Gilberto. Na hora, o malandro do Anísio se levantou e disse: "O Gilberto vai ser saudado por Darcy Ribeiro". Eu protocomunista. Gilberto da direita. E tive que falar de improviso da minha enorme admiração.
Depois, fui convidado, em segredo, para fazer o prefácio de uma edição em espanhol de "Casa Grande e Senzala". Foi a crítica mais severa e o elogio mais deslavado que já se fez ao Gilberto. Sei que dei uma grande alegria a ele. Um homem de esquerda reconhecer a grandeza, a importância e a beleza do livro.
Folha - Quando partiu para o trabalho de campo o sr. foi direto ao encontro dos índios kadiwéu?
Darcy - Queria pesquisar esses índios cavaleiros. Eram dos índios mais falados do Brasil, os únicos que tinham adotado os cavalos. Criaram um verdadeiro império, que ia da fronteira de São Paulo até a Bolívia. Do norte de Mato Grosso até Assunção. Era um império. Uma gente que substituiu praticamente o parto pela adoção. Tomavam crianças de dois anos das tribos que eles dominavam e as mulheres criavam esses meninos. Eu me preparei para estudar esses índios, mas como não sou besta, antes de ver os meus índios quis ver outros, para ter uma base de comparação. Estudei os terena e os kaiowá.
Me impressionei com a inserção dos terena no sistema de trabalho do sul de Mato Grosso. Eram os principais trabalhadores enxadeiros da região, enxadeiros confiáveis. Aquele era o lugar que um índio que deixava de ser índio podia ocupar. Uma coisa também terrível foi ver a espiritualidade dos kaiowá. Uma gente maltrapilha, com um sofrimento tremendo. Tinham sido missionarizados pelos jesuítas, mas reconstituíram sua cultura. Saíam em andanças no rumo de Santos. Acreditavam que, se dançassem até o corpo ficar muito leve, eles levitariam e iriam ter à terra sem mares, a terra de Maíra. É um mito de uma grande beleza. São índios que hoje estão se suicidando.
Folha - E os "seus" índios?
Darcy - Os kadiwéu guardavam ainda alguma coisa do orgulho de um povo cavaleiro. Tive uma inserção muito boa na tribo. As mulheres quiseram casar comigo. Levei o livro de um etnólogo italiano, Guido Boggiani. Ao olharem comigo as ilustrações, eles reconheceram o retrato de uma mulher. Gritavam: "Lili, Lili!" Depois, na Itália, me entrevistaram sobre o Boggiani e me perguntaram de sua mulher kadiwéu. Mas não era uma mulher, era um homem, que vivia como mulher —o homossexualismo nessas tribos tinha a possibilidade de existir, o homem podia decidir se seria homem ou mulher. O fato é que tive uma relação muito profunda com eles, fiquei muito apegado emocionalmente, e até hoje recebo mensagens de lá.
Depois fui estudar os chamados urubus, os índios mais violentos do Brasil, na fronteira do Pará com o Maranhão. Fiz duas expedições, uma de nove meses, em 49, e uma de onze meses, posteriormente. Estive também no Xingu, estive com os bororos e com índios aculturados, em São Paulo.
Folha - Como foi seu encontro, posteriormente, com o Lévi-Strauss, em Paris?
Darcy - Foi uma coisa gozada. Eu tinha publicado meu livro "O Processo Civilizatório". Mandei para ele e depois fui procurá-lo para saber o que tinha achado. Ele respondeu: "Me interessou" —com um muxoxo. Eu disse: "Mas mestre, o que é isso, esse livro me custou tanto esforço, o senhor não pode me dar uma opinião?" Ele disse: "Não, não. Essa obra teórica sua e minha é bobagem. Você é um príncipe dos observadores, sua etnografia é ótima, por isso uso muito os mitos que você colhe. Quem pode fazer isso deve fazer isso, ficar estudando os índios". E eu rebati: "E você fazendo a teoria?". Ele disse: "Não é nesse sentido, minha obra teórica não vai durar 20 anos. O importante é a etnografia". Eu saí muito puto com ele, porque era uma divisão de trabalho que eu não aceitava.
Folha - Quando foi isso?
Darcy - Deve ter sido em 72 ou antes. Talvez em 70.
Folha - Como o sr. foi, afinal, parar na vida política institucional, na política mais próxima do Estado?
Darcy - Em 1954 eu estava em São Paulo. Eram as comemorações do quarto centenário de São Paulo. Estava ajudando a montar uma exposição luso-brasileira, para a qual o Oscar Niemeyer havia projetado um museu redondo, no Ibirapuera —que os imbecis acabaram entregando à Aeronáutica, para colocar avião velho. Havia um congresso e eu mostrava um filme que tinha feito sobre um funeral bororo. No meio daquilo, vem a notícia de que o Getúlio tinha se suicidado. Na época, estava inclinado a acreditar naquela história do "mar de lama". Mas levei um susto e, naquele momento, comecei a ver que o Getúlio era vítima de uma campanha da mídia.
Ele estava criando a Petrobrás e a Eletrobrás. Estava sendo enxotado do Catete. Os próprios ministros achavam que ele deveria sair, para evitar a guerra civil. Ao invés disso, esse homem, de 71 anos, arrebenta o coração com uma bala. Para acordar o povo brasileiro. E acordou. Todos os brasileiros viram que era um complô contra ele, contra a política trabalhista e nacionalista dele. Foi uma revirada na política. Lacerda esperava ser presidente da República e acabou escondido na caixa d'água. Toda a direita se recolheu. E quem alcançou o poder foi JK, que fez um governo brilhante.
Naquele momento eu caí em mim: "O que é isso, esse homem que se suicida, essa luta que há aí dentro e eu brincando de comunista? Não há viabilidade nessa idéia". Nesse momento, me aproximei do PTB.
Folha - Como o sr. conheceu João Goulart?
Darcy - Foi no Rio. Ele foi com a Maria Teresa, que naquela época era a mulher mais bonita do mundo! Estavam em lua-de-mel. Um amigo nos apresentou.
Folha - Com ele o sr. partiu para o trabalho na área de educação?
Darcy - Foi depois de 54 que deixei de trabalhar com índios e passei a trabalhar com o Anísio Teixeira. Ele se apegou muito a mim. Era uma pessoa com muitos planos, que trabalhava com o Juscelino. Ele enfrentou uma campanha de setores da Igreja e eu saí em defesa dele. O Juscelino o manteve no governo e acabamos indo trabalhar juntos. Foi daí surgiu a idéia da Universidade de Brasília. Junto com os líderes da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência formulei o projeto de uma universidade de novo tipo. Passei dois anos lutando para criá-la.
Folha - Foi muito difícil?
Darcy - Foi muito. No dia em que o Jânio renunciou, eu fui ao Palácio falar com o José Aparecido, que era secretário do presidente. Estava aquele ambiente soturno. Eu não sabia de nada. Ele me disse para ir à Câmara. Cheguei lá e tinham acabado de aprovar a carta de renúncia. Os deputados estavam agitadíssimos. Fui para a mesa e pedi para o Sérgio Magalhães colocar em votação a lei de criação da Universidade de Brasília. Ele disse: "Você está louco". Mas acabou fazendo e a lei foi aprovada. Depois fui ao Senado. Falei com o Hermes Lima, que era o primeiro-ministro. Ele me recomendou que falasse com o Felinto Muller, então senador e presidente do PSD. Disse: "Eu? Procurar o Felinto Muller?" Mas acabei indo.
Ele, que era um homem de direita, gostou muito que um comunista o procurasse. Me convidou para tomar um chá na casa dele, aliás acompanhado de um bolo muito gostoso. Passou um tempo e ele me avisou: "Vai para a sessão de amanhã que o Senado vai aprovar sua Universidade". Um senador do Rio Grande Sul, Mem de Sá, fez um discurso extremamente eloquente, dizendo que eu era um homem muito inteligente, muito coerente e comunista. E se era assim, a Universidade seria comunista. O Felinto nem olhou para mim. Botou em votação e a lei foi aprovada por grande maioria. Convidei o Anísio para ser o reitor. Ele se negou e, em função disso, o primeiro reitor fui eu.

Continua à pág. 6-6

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