São Paulo, segunda-feira, 6 de fevereiro de 1995
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Almodóvar defende a necessidade da escrita

DO "EL PAÍS"

No último dia 16, Pedro Almodóvar começou a rodar seu novo filme, cujo título —ainda não definitivo— pode entrar para o livros dos recordes como um dos maiores: "Existe Alguma Possibilidade, Por Menor Que Seja, de Salvar Nosso Caso?". O título remete diretamente a "O Que Eu Fiz Para Merecer Isso?", provavelmente um de seus filmes mais redondos.
É uma referência justificada: o tom da história, ao menos no roteiro, tem um sabor agridoce que a inunda, como no melodrama sobre o bairro da Conceição. Os dois filmes narram os problemas vitais de mulheres maduras que atravessam uma crise sentimental importante.
Se Carmen Maura em "O que Eu Fiz..." é maltratada pela vida, pelo marido e pelos filhos, Marisa Paredes vai fazer neste novo filme sua descida aos infernos particular, entre as agressões do trabalho e as de seu marido.
Claro que ainda é cedo para avaliar o resultado, mas "Existe alguma..." pode ser outro dos grandes filmes do diretor, uma dessas jóias que a partir dos costumes e da sensibilidade o transcendem. Ele tem, em princípio, todos os azes na manga. É o que dizem todos que conhecem o roteiro.
A literatura tem, direta ou indiretamente, um papel essencial no filme. A profissão da protagonista (uma escritora de romances cor-de-rosa), o contrato duro que ela tem com sua editora e a relação, inicialmente profissional, que mantém com o protagonista masculino, o editor do caderno de cultura de um jornal —concretamente, do "El País"—, tudo gira em torno da literatura.

Pergunta - Pode-se dizer que com este filme você rende uma homenagem clara à literatura?
Resposta - Mais do que uma homenagem, é uma espécie de constatação da importância da literatura. Ou mais que isso: da importância de se expressar através da escrita na vida, nas personagens e nas histórias.
A protagonista é uma grande leitora. O que faço com essa mulher em crise é colocá-la num contexto em que a única coisa que pode fazer é ler e escrever em liberdade. Acho que todo mundo tem uma história para contar e que cada vez menos, infelizmente, usa-se a escrita para se relacionar com o resto.
Não tenho dúvida de que através da escrita as pessoas podem se expressar melhor do que por telefone ou falando. Que já se tenha perdido o hábito de escrever cartas me parece uma perda terrível. Acho que, independente do fato de se escrever bem ou não, há uma espécie de reflexão e emotividade no simples fato de escrever que não existe na conversa direta.
O que quero contar com esta personagem é a história de uma mulher determinada pela escrita desde que é pequena, o que de algum modo tem a ver com minha própria biografia. A origem de sua afeição pela leitura e pela escrita remonta à sua infância em uma família rural em condições econômicas precárias.
Com 9 ou 10 anos começa a ler e a escrever cartas para as vizinhas que são analfabetas. Esta é sua única escola e, suponho, começa aí também sua primeira relação com a literatura que interessava a essa classe social: a literatura de banca de jornal. Por isso seus primeiros textos são como esse tipo de romances baratos...
Pergunta - Quando você chegou a Madri e entrou em contato com os grupos de teatro independente, com os "modernos", que tipo de formação literária você trazia?
Resposta - Era uma formação aleatória, casual. Meu primeiro contato com a ficção foi quando na escola pretenderam me contar a História da Espanha. Lembro-me do livro que explicava as coisas com ilustrações que me encantavam de Joana, a Louca.
O livro nos contava como estavam a rainha e suas filhas no Real Alcazar de Segóvia, a rainha ensinando-as a costurar. Joana dizia que não tinha nascido para costurar, que para isso havia as donzelas e as plebéias. Já mostravam Joana como uma rebelde.
A rainha dizia mais ou menos assim: "Joana, minha linda, antes de saber governar um país, precisa aprender a governar uma casa". Era alucinante. Joana ao tentar costurar picava o dedo, sangrava e chorava. Lembro que o capítulo se chamava "Sangue e Lágrimas" e era fortíssimo.
Isso tudo era unido ao final de sua vida, quando Joana estava confinada e num momento de lucidez percebe que está em farrapos. Então pede aos guardas que tragam linha e agulha para ela. Quando vai costurar, pica o dedo, chora e se lembra do conselho que sua mão lhe dera. Esse foi meu primeiro contato com a literatura.
Pergunta - E depois...
Resposta - O segundo passo de aproximação foi através dos catálogos, porque na minha casa se comprava tudo pelo correio. Minhas irmãs pediam suas coisas e eu pedia algum livro da coleção de best sellers de então.
Lia Lajos Zhilay, Knut Hamsum, Morris West e um livro que chegou às minhas mãos e me causou grande impacto, "Debaixo das Rodas", de Hermann Hess, e também "Bom Dia Tristeza", de Françoise Sagan. Foi o que mais me impressionou de todos porque tinha uma vida muito entendiada. A partir daí comecei a me orientar sozinho pelos autores que gostava.
Pergunta - E quando chega em Madri...
Resposta - Chego em Madri em 1967 com uma formação escassa mas feita por mim mesmo. Era o "boom" da literatura latino-americana e imediatamente caem nas minhas mãos "Cem Anos de Solidão", algum livro de José Donoso, de Borges, Cortázar, ou Cabrera Infante.
Guiado sempre pelo que produz prazer, começo a devorar os livros dos grandes, livros muito contundentes. Nesse momento também começo a conhecer livros de Burroughs...
Pergunta - Voltando à protagonista do filme, quais seriam suas preferências literárias e sua relação com a literatura já que vive dela?
Resposta - Bom, ela tem um contrato terrível com uma editora, como têm todas as autoras de romances cor-de-rosa, que não podem escrever sobre política nem sobre muitas outras coisas que têm a ver com a realidade.
Como, além disso, ela está passando por uma crise sentimental terrível, seus romances cor-de-rosa ficam cada vez mais negros. Já não tem nehum estímulo para escrever porque, como diz Marguerite Duras, escrever é tentar saber o que escreveríamos se escrevêssemos. E ela, por causa de seu contrato, já sabe o que tem que escrever e não tem mais força nem vontade.
Pergunta - Mas, segundo o roteiro, ela tem em sua mesa uma série de romances de autoras intensas de quem gosta.
Resposta - É verdade, seu livro de cabeceira é, sobretudo, "O Bosque da Noite", de Djuna Barnes, que é um dos livros mais desesperados que conheço sobre a paixão. Tem também livros de escritoras muito atípicas como Jane Bowles, Jean Ryce, romances de uma tristeza tremenda, mas também de um humor fantástico, tipo de humor das pessoas que já não têm mais nada a perder e estão abertas para tudo. Mas não queria que pensassem que a protagonista ou eu mesmo somos muito intelectuais, que é um termo de que não gosto.

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