São Paulo, quarta-feira, 8 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

Aplicabilidade dos direitos humanos e as ONGs

BENEDITO DOMINGOS MARIANO ; FERMINO FECHIO FILHO

ONGs foram, em grande parte, protagonistas do processo de luta contra a ditadura
BENEDITO DOMINGOS MARIANO e FERMINO FECHIO FILHO
O embaixador do Brasil em Washington (EUA), Paulo Tarso Flecha de Lima, dando continuidade à polêmica sobre os relatórios de organizações internacionais não-governamentais, relacionados à situação dos direitos humanos no Brasil, afirma que as ONGs "com todos os méritos que possam ter —e não os desconheço— não possuem legitimidade equiparável ao Estado de Direito, nem a decorrente responsabilidade com relação ao público" ("As bases do diálogo", Folha, 19/10).
Lembra o ilustre embaixador que o Brasil participou ativamente da elaboração do texto da Declaração Universal de 1948 e que afastou-se momentaneamente dessa linha nos anos do arbítrio.
O que o embaixador chama de "afastamento momentâneo" representou mais de 20 anos de obscurantismo. Nesse período, nenhum dos grandes pactos ou convenções relacionados aos direitos humanos —a não ser as Convenções de Direito Humanitário— foi ratificado pelo Brasil.
Uma geração inteira estava sob o marco da censura, prisões arbitrárias, cassação de mandatos eletivos, torturas, mortes, limites impostos às prerrogativas do Legislativo e Judiciário, esfacelamento dos partidos políticos, exílio e perseguição às organizações populares e sociais.
As ONGs foram, nesse período, em grande parte, as protagonistas do processo de luta contra a ditadura. Graças a ação delas, vidas foram salvas e impulsionou-se o processo de transição democrática.
É verdade que, a partir de 1985, iniciou-se no Brasil um processo formal de adesão aos grandes instrumentos jurídicos internacionais e interamericanos. Mas também é verdade que, no plano interno, no período de 1985 a 1989, foram assassinadas, em conflitos de terra, 488 pessoas entre lideranças rurais, religiosas e agentes de pastoral nas regiões do Centro Oeste, Norte e Nordeste.
Em São Paulo, de 1981 a 1992, foram mortos em ação da PM (Polícia Militar) 6.594 civis, e os policiais continuam, até hoje, sendo julgados pelo Tribunal de Justiça Militar Estadual, um dos resquícios do período do arbítrio.
Deve saber, o ilustre embaixador, que não basta a simples ratificação, pelo país, dos Tratados e Convenções internacionais relativos à proteção dos direitos humanos, se, no plano interno, não houver um empenho efetivo para a garantia, na prática, desses direitos. Isso representa uma das bases fundamentais do diálogo Estado-sociedade.
No final dos anos 80 e início dos anos 90, o mundo assistiu a profundas mudanças estruturais. No plano internacional, tivemos a 2ª Conferência Mundial dos Direitos Humanos, promovida pela ONU (Organização das Nações Unidas) em Viena (1993).
Essa conferência, além de reafirmar a indivisibilidade e universalidade dos direitos humanos, trouxe uma novidade no cenário internacional: o reconhecimento da importância da sociedade civil na evolução e aplicação dos direitos humanos.
A participação de 800 ONGs de todo o mundo, na Conferência de Viena, representou o fator inovador em relação ao sistema da ONU. Aliás, a representação diplomática brasileira nessa conferência, soube, com muita propriedade, na coordenação da comissão de redação, aproveitar e inserir muitas das recomendações das ONGs no texto final. O embaixador deve saber disso.
Não obstante, assistimos perplexos às chacinas da Casa de Detenção, em São Paulo (a maior registrada nesse século), da Candelária e Vigário Geral, no Rio de Janeiro, e as mortes promovidas pelos grupos de extermínios no Espírito Santo, o que demonstra a urgência de se criar uma nova política de segurança e cidadania no país.
Apesar disso, obtivemos alguns avanços. É preciso registrar que, pela primeira vez no Brasil, no governo do presidente Itamar Franco, o Ministério da Justiça abriu um intenso diálogo com a sociedade civil, promovendo em conjunto com dezenas de entidades (CNBB, ABI, Centro Santo Dias, Comissão Teotônio Vilela, Núcleo de Estudos da Violência da USP, entre outros) a Agenda Nacional de Direitos Humanos e a Jornada Contra a Violência, que resultaram em dezenas de projetos de lei, relacionados com:
— tipificação do crime de tortura;
— controle das empresas privadas de segurança;
— reformulação do CNDPH (Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Humana);
— reformulação da lei de execução penal;
— criação da Secretaria Nacional de Segurança Pública;
— mudança da competência da Justiça Militar para julgar crimes contra a vida, cometido por PMs;
— federalização dos crimes contra os direitos humanos e sistema de proteção às vítimas entre outros.
Cabe ao novo governo dar continuidade a essa parceria, colocando na pauta das prioridades nacionais, a aprovação desses projetos no Congresso Nacional.
Se não concretizarmos mecanismos eficazes de proteção aos direitos humanos no Brasil, as violações cotidianas dos direitos fundamentais continuarão sendo tema obrigatório dos relatórios das ONGs locais e internacionais, mesmo que isso desagrade ao ilustre embaixador brasileiro.

BENEDITO DOMINGOS MARIANO, 35, sociólogo, é secretário geral do Fórum Interamericano de Direitos Humanos (Fideh).

FERMINO FECHIO FILHO, 51, é coordenador do Centro Santo Dias de Direitos Humanos da Arquidiocese de São Paulo.

Texto Anterior: Uma solução de justiça —o auxílio-alimentação
Próximo Texto: Fuga de capitais?; Resultados contra a fome; Parceria na saúde; Desperdício de água; Pobre consumidor; Ética farmacêutica; Importante demais; Empréstimo ao México; "Favelados" no show dos Stones
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.