São Paulo, quinta-feira, 9 de fevereiro de 1995
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Grau zero

OTAVIO FRIAS FILHO

O cinema, que em dezembro se convencionou que fará cem anos, é a língua franca da nossa época, ainda mais uniforme do que a música pop, mais universal do que qualquer forma de arte.
Poesia, teatro, ópera, artes plásticas são redutos cada vez mais estreitos, mas o cinema todo mundo vê, entende e gosta. A adesão do século à sua magia não se resume, aliás, a Hollywood.
Tanto nazistas como comunistas eram obcecados por filmagens. Goebbels foi crítico de cinema e a montagem de uma manifestação de massas não difere muito da produção de um filme de Cecil B. DeMille.
No século passado, a ópera ambicionava reunir som, forma e luz num mesmo espetáculo, plasmando diversas experiências sensoriais numa só unidade. Mas o sonho da obra de arte total só se tornou possível com o cinema.
Uma alucinação, uma lembrança, um beijo, o rompimento do eixo da biga de Ben-Hur —qualquer coisa aparece ainda mais real, expandida na tela, do que a própria realidade.
Os recursos de manipulação de imagens, mais recentes, derrubaram os últimos interditos que ainda havia, de modo que a possibilidade de gerar ilusão no cinema é ilimitada.
Durante muito tempo os países pobres acreditaram na idéia de fazer bom cinema com poucos recursos. Conseguiram, às vezes, resultados extraordinários em termos de poesia visual, de impacto dramático ou político.
Mas o que era estratégia acabou se tornando um cacoete; o que era uma deficiência a ser contornada com inventividade, virou desculpa para voltar as costas à evolução da gramática, como os críticos gostam de dizer, do cinema.
A consequência é que o nosso descompasso, hoje, é abissal. Claro que temos outros descompassos mais graves, se não maiores, mas no caso do cinema a distância já foi bem menor.
Acho que a escritora Marilene Felinto tem muita razão quando escreveu, no caderno Mais!, que um país não se reconhece se não tiver um cinema forte.
A culpa é de todos nós, do nosso comodismo, da nossa "genialidade", do hábito de esperar tudo do governo, da nossa improvisação, do lugar exagerado que a TV ocupou etc.
A política de Collor para o cinema foi, como era do seu estilo, a de terra arrasada. Paradoxalmente, também aqui parece que o presidente impedido acabou prestando, sem querer, um serviço ao país.
Os vínculos com o governo foram cortados, as lamúrias secaram. Chegou-se a uma espécie de grau zero do cinema brasileiro. O fantasma desse grande criador, Glauber Rocha, já não assombra os novos cineastas.
O país dispõe agora de um governo de intelectuais. Não se trata, claro, de retomar o ciclo de paternalismo e dependência do passado. Se não atrapalharem, já será ótimo.

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