São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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Um repto ao agribusiness

JOSÉ ELI DA VEIGA

Muita gente deve ter se chocado ao saber que a festa de confraternização de fim de ano dos funcionários do Senar (Serviço Nacional de Aprendizagem Rural), na Federação da Agricultura, em São Paulo, foi regada a bebidas importadas e com farta distribuição de brindes. "As empresas rurais, que fazem contribuições ao Senar, gostariam de saber quem pagou a conta", diz-se à boca pequena.
O episódio retrata bem o contraste existente no Brasil entre a agricultura e a indústria no que diz respeito à formação profissional.
Em princípio, o Senar deveria ser algo equivalente ao Senai (Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial). Na prática, são realidades opostas. O Senai é uma das únicas tecnologias de exportação, na área de ensino, produzidas pelo Brasil até o momento. Peritos estrangeiros —inclusive do Banco Mundial— o tomam como paradigma, tendo sido o modelo para quase todos os países latino-americanos, e sendo hoje exportado para a África. Claudio de Moura Castro diz que o Senai nada deve aos sistemas europeus em qualidade e resultados. "Seguramente, é um de nossos maiores êxitos na educação, combinando inovação, adequação das soluções aos problemas e competência administrativa." (Educação brasileira: consertos e remendos, Rocco, 1994, pp. 156-177).
As empresas rurais que sustentam o Senar e que, sem querer, pagaram a conta do luxuoso rega-bofe de fim de ano, precisam de uma explicação para a inexistência de algo semelhante ao Senai no setor agropecuário. O problema é que a agricultura patronal não necessitou, até há pouco tempo, de mão-de-obra qualificada. Seus empregados podiam ser meros peões e não havia grandes exigências de formação para seus poucos fiscais ou gerentes. Ao seu lado, os agricultores familiares —os que mais precisavam de formação profissional— não tinham (e continuam não tendo) como assumir mais uma despesa que permita a montagem de um esquema educacional para si próprios e/ou seus filhos.
Por isso, todas as representações do agribusiness, da mais poderosa associação especializada ao mais raquítico sindicato de trabalhadores rurais, todas tiveram, até agora, uma atitude muito passiva com respeito à formação profissional dos agricultores.
Ainda é absolutamente dominante no Brasil a idéia de que o agricultor não precisa de muito estudo. Mesmo em áreas de agricultura próspera e moderna, é muito comum que permaneça à frente da propriedade paterna quem não se deu bem com a escola e, com muita dificuldade, completou a quarta série. Como a sociedade brasileira não valoriza as atividades manuais, desde muito cedo incentiva a criança que vai bem na escola a se tornar escriba e procurar um emprego bem distante do sítio ou fazenda em que nasceu e se criou.
Em muito pouco tempo esse esquema se mostrará completamente inviável. Contrariamente ao padrão tecnológico que orientou a modernização agrícola dos últimos 30 anos, o que vem emergindo em reação à forte pressão ambiental não poderá ser resumido a um mero "pacote" acompanhado de receitas simples sobre o uso de insumos básicos.
O novo paradigma tecnológico tende a reforçar o caráter artesanal da atividade agrícola, elegendo como principal insumo o conhecimento. Será impossível acompanhar essa mudança com o atual sistema educacional à disposição dos agricultores. E por "sistema educacional" entende-se aqui tanto o tripé formado pelo desastroso ensino regular básico oferecido nas escolas rurais, a quase inexistente formação profissional e as debilitadas redes de extensão e/ou assistência técnica, quanto as relações desse tripé com o ameaçado sistema de pesquisa agropecuária.
Não haverá proposta puramente administrativa, por mais engenhosa que possa ser, que altere esse panorama, favorecendo uma educação fundamental mais adequada à realidade da agricultura. Por isso, é crucial prestar atenção em algumas experiências práticas que estão abrindo novos caminhos e que poderão ajudar muito quando a mudança se tornar possível.
Uma fórmula de absoluto sucesso em países como a França e a Bélgica —a "Maison Familiale"— vem sendo reproduzida, há algum tempo, na região Sul e no Estado do Espírito Santo. Em alguns casos, esse projeto de Casa Familiar Rural (CFR) foi implantado por prefeituras. Mas, em geral, a CFR é uma Associação de Famílias e Monitores que organiza cursos em alternância, isto é, períodos intensivos de ensino formal, com aulas e atividades na escola, entremeados por períodos de atividades práticas na propriedade.
Fórmulas muito parecidas têm sido postas em prática, há mais tempo, por ONGs. Uma das experiências de mais êxito é, sem dúvida, a da Assesoar, Associação de Estudos, Orientação e Assistência Rural, criada em 1966 por jovens agricultores da região de Francisco Beltrão, PR.
O que fica bem evidente nessas experiências é a total imbricação de duas dimensões que costumam estar bem separadas no ambiente urbano: ensino básico e formação profissional. E elas acabam por forjar, também, esquemas eficientes para uma melhor relação entre os agricultores e os profissionais que prestam assistência técnica, sejam eles das redes oficiais, das cooperativas ou das agroindústrias.
Daí a importância de não separar artificialmente propostas sobre o ensino básico de propostas relativas à formação profissional e à assistência técnica/extensão rural. Deve-se pensar em um modelo que possa aliar as lições das experiências pedagógicas não-governamentais de alternância ao know-how do Senai.
O repto é, portanto, que as entidades representativas dos diversos segmentos do agribusiness estudem essas experiências e proponham, em conjunto, uma completa e abrangente reforma do sistema educacional rural.

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