São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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É absurdo condenar a fragilidade da obra

NUNO RAMOS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Há algum tempo vem se acumulando na imprensa alguns equívocos sobre o meu trabalho: sou visto como o autor de obras que se desfazem, numa agressão inconsequente aos colecionadores que adquiriram meu trabalho. Isto teve início em 1989, em reportagem da revista "Veja", e retornou esporadicamente de lá para cá.
É que produzi, em 1988 e 1989, obras que contêm vaselina e parafina, materiais extremamente sensíveis à temperatura, que necessitam de cuidados de conservação que o meio de arte no Brasil não oferece. Duas destas obras se perderam, outras poucas foram vendidas e as demais estão guardadas comigo —em bom estado.
Entre outras agressões, meu trabalho é logo de início comparado a filmes de horror e depois, mais especificamente, à criatura do dr. Frankenstein. Em legenda, é chamado de "painel sujão". Sou acusado falsamente de produzir uma instalação que "só podia (...) se esfacelar em poucos dias de exibição", na última Bienal de São Paulo. Na verdade, ela foi parcialmente danificada pelo público, por absoluta falta de segurança, no dia da abertura, como foi largamente noticiado na época. Outras obras, aliás, também foram depredadas ou roubadas, mas pareceu mais fácil ao repórter acusar um trabalho que não conhece ou compreende.
Tratados como crianças inconsequentes, diz-se dos artistas que "preocupam-se apenas com o efeito plástico" e que "cometem loucuras em nome da expressão artística" e dos colecionadores, tratados como psicóticos, que "é difícil entender a compulsão que leva certas pessoas a desembolsar uma pequena fortuna em troca de algo que poderá desaparecer".
As galerias, por seu turno, são acusadas de não "esperar o artista amadurecer, vendendo uma produção que necessitaria tempo para provar sua eficácia técnica". Como se vê, mais do que tratar de problemas de conservação, a matéria é veículo para uma antologia dos preconceitos e confusões que vêm atrapalhando a produção e a circulação de arte no brasil há bastante tempo.
Segundo a revista, o crítico Olívio Tavares Araújo diz, "taxativo", que "a perecibilidade decorrente de falta de técnica é mera incompetência". Olívio está chamando Joseph Beuys, Jackson Pollock e Leonardo da Vinci, entre outros, de incompetentes. Além disso, que "técnica" afinal é esta: grande parte da força majestosa da arte moderna vem da sua capacidade de ampliar a definição da arte a cada grande trabalho. Esta espécie de inclusão súbita de conteúdos e recursos formais inexplorados alimenta o projeto moderno em sua generosa e crescente autonomia.
É evidente que isto não seria possível sem que a noção técnica fosse ela também posta em xeque, fato que o crítico não parece capaz de compreender. Afinal, Beuys não é um técnico da banha, nem Duchamp um técnico de vidros quebrados, nem Manzoni um técnico da merda. Eles são, isto sim, artistas fortes o bastante para incluir tais materiais e seu tratamento plástico num sistema simbólico que aparece como necessário à cultura que o produziu (ainda que um lapso de tempo transcorra até este reconhecimento se efetivar), com seu correlato de comercialização, cuidados museológicos e conservação.
O restaurador Thomas Brixa vai mais longe: em tom paternal, diz que os artistas "devem se perguntar se determinado efeito não é possível com o uso de técnicas mais duráveis". Mas ao reduzir a arte a um "efeito", substituível por outro, mostra o alcance limitado de seu argumento.
"O colecionador João Sattamini sempre fica apreensivo por causa do verão", alardeia a revista. É que um Carretel "de ninguém menos que Iberê Camargo" amolece nos dias quentes. Fantástico! Será que um dos maiores colecionadores do país não pode instalar um ar condicionado em sua sala?
Gilberto Chateaubriand, fotografado na posição um pouco estranha de quem mata moscas invisíveis sobre uma obra de Ivens Machado (feita de papier maché, mas que aparece na foto, ao ar livre), diz que a respeito da perecibilidade das obras é pródigo "não de histórias, mas de dramas". A sua frase dá uma bela definição da arte brasileira como um todo, ao menos para quem a produz.
Afinal, o que está elidido nesta antologia de agressões e argumentos confusos —ainda que seja difícil, em se tratando desta matéria, saber até que ponto o que saiu publicado corresponde ao pensamento de seus autores— é o completo descaso, com as honrosas exceções de sempre, de nossas instituições e, em menor medida, do mercado de arte para com a produção brasileira. Este é o verdadeiro assunto a ser tratado e afeta toda a nossa produção, independentemente do material utilizado pelo artista.
Os bronzes de Brecheret, os desenhos de Mira Schendel, as pinturas a óleo de Guignard ou a limalha de Tunga são todos vítimas da mesma violência e descaso. É claro que ela se fará notar com maior agudeza e em menor espaço de tempo nas obras que utilizarem materiais frágeis. É absurdo, no entanto, culpar a fragilidade das obras, e não o despreparo para recebê-las.
Nossa produção estética está, como sugere o título da matéria, aos pedaços. Afinal, não temos até hoje um catálogo decente de artistas do porte de um Oswaldo Goeldi ou uma Mira Schendel. Não temos qualquer levantamento sistemático do que fizeram nossos principais artistas, nem de onde estão suas obras.
Nenhum museu brasileiro constituiu um acervo verdadeiramente significativo, nem foi capaz de captar recursos privados ou mesmo o interesse do público para tais artistas, nem fazer circular seus trabalhos e os valores e pensamento que encarnam. Estão todos adormecidos sob o lençol confortável da falta de recursos. A timidez de nosso mercado não consegue também acompanhar a produção dos artistas que, ainda que frequentem as manchetes dos jornais, acabam cercados por uma solidão difícil de descrever.
No entanto, acredito que durante os últimos 40 anos talvez nenhuma outra área da cultura brasileira manteve um florescimento tão generoso e ininterrupto. São três gerações sucessivas que se entrelaçam com aquela proporção de diferença e semelhança em que se percebe um estilo, uma feição, criados a partir de discrepâncias e retornos. Há uma vitalidade ímpar no que se produz no Brasil hoje.
A função da arte na vida social, o alcance de seus projetos ainda não se instituíram, como parece ter acontecido nos países desenvolvidos a partir dos anos 60. Talvez por isto haja em nossa produção um frescor avesso à claustrofobia de grande parte do que se faz lá fora. É pena que toda esta riqueza continue, em larga medida, sendo jogada na lama da indigência intelectual, como pérolas aos porcos.

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