São Paulo, sábado, 11 de fevereiro de 1995
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Miopia nacionalista dos dois lados gera conflito

MARIO VARGAS LLOSA
ESPECIAL PARA EL PAÍS

Equador e Peru têm a mesma geografia e uma história comum. São habitados pelas mesmas raças, e seus problemas políticos, econômicos e culturais são intercambiáveis. Apesar de seu altíssimo índice de natalidade, contam com um território em grande parte despovoado e com recursos naturais dos quais a inépcia de seus governantes faz mau aproveitamento.
O fato de que, nessas condições, os dois tenham caído na armadilha de um conflito armado, precisamente agora que a integração regional parecia estar em andamento, graças a organismos como o Pacto Andino, o Mercosul e o Nafta, diz muito sobre os estragos que a miopia nacionalista continuará causando por bom tempo ainda na América Latina.
Como, no caso de guerra, os governos se sentem autorizados a exagerar e a mentir em defesa de sua causa, é muito difícil saber ao certo o que foi que desencadeou as ações militares desta vez. Existem, não obstante, indícios de uma possível explicação. Sabe-se que, como em 1981, quando também houve uma escaramuça militar nessa região, o pretexto foram os 78 km de fronteira que ainda falta demarcar, dos 1.600 já demarcados, com a aquiescência das duas partes, segundo o Protocolo do Rio assinado por Peru e Equador em 1942, aprovado pelos Parlamentos das duas nações e sancionado por quatro países avalistas: EUA, Brasil, Argentina e Chile.
As objeções que o Equador colocou, em princípio, à sinalização desse trecho de 78 km, que seguem mais ou menos os meandros da cordilheira do Condor, pareceram razoáveis: a realidade geográfica dessa selva impenetrável não correspondia exatamente ao traçado dos mapas utilizados no protocolo. Para sanar esses erros, e de comum acordo, os dois se submeteram à arbitragem de um perito, o cartógrafo Brás Días de Aguiar. Mas quando tudo estava pronto para a colocação das balizas fronteiriças, surgiu impedimento insuperável: Velasco Ibarra.
Que esse extraordinário personagem, um dos mais pitorescos caudilhos civis produzidos por um continente pródigo neles, não tenha gerado um grande romance, é uma falha imperdoável da literatura equatoriana. Ibarra foi cinco vezes eleito presidente do Equador, e as cinco vezes derrubado pelos gorilas militares. Sua irresistível popularidade residia em seu domínio da sacada, desde a qual —sempre citando poetas clássicos— lançava os discursos patrióticos que comoviam as multidões, que os ouviam entre a euforia e o choro. Seu tema favorito era a reconquista do território —nada menos que a metade do corpo sagrado da pátria!— roubado do Equador por seu vizinho meridional. Devia ser muito persuasivo, porque não há político equatoriano que se atreva a desmentir essa fantasia histórica, nem governante de Quito que facilite a demarcação dos malfadados 78 km, o que acabaria de vez com o velho litígio e faria com que Equador e Peru pudessem finalmente estabelecer uma estreita cooperação para o aproveitamento conjunto dos recursos de uma região que até agora é ocupada apenas por escassas comunidades indígenas da família dos jibaros, que não sabem sequer porquê as balas passam zunindo sobre suas cabeças, e que os peruanos e equatorianos civilizados —seringueiros, garimpeiros, narcotraficantes, missionários e militares— vêm maltratando e roubando de maneira igual.
É uma região que eu conheço, na qual tem lugar boa parte de minha novela La Casa Verde, e não deve haver mudado muito desde que, subindo seus majestosos rios em canoas indígenas, descobri a existência de Tushia, senhor feudal que vivia no coração daquele mato, com seu harém e seu exército particular com que periodicamente atacava as aldeias indígenas para lhes roubar o alúmen e as donzelas. Essa terra nunca foi equatoriana, e embora teoricamente sempre tenha feito parte do Peru, na verdade até agora só foi dos aguarunas, huambisas, shapras, jibaros e chuaras que ninguém leva em conta nessa disputa, apesar de que eles sem dúvida serão suas principais vítimas.
Entre a cordilheira do Condor e as margens do rio Cenepa, território que segundo o Protocolo do Rio se encontra na parte peruana da fronteira, os militares equatorianos instalaram uma pequena guarnição que, ao ser detectada, deu origem ao choque armado de 1981, que culminou com a retirada da dita guarnição. Mas nos anos seguintes houve novas infiltrações e em 1991 os então chanceleres do Peru e do Equador firmaram um pacto de cavalheiros, pelo qual o governo peruano autorizava a presença daqueles postos de vigilância do Equador e este se comprometia a respeitar o status quo fronteiriço. O acordo era no mínimo curioso, pois ou o Peru renunciava à soberania sobre essa centena e meia de quilômetros quadrados ou não o fazia, mas nesse último caso não se compreende que ao mesmo tempo aceitasse a presença de tropas estrangeiras nessa zona. A razão desse pacto foi populista: permitir ao presidente Fujimori visitar o Equador e ser apresentado pela imprensa cativa como o estadista que havia colocado ponto final nas divergências entre as repúblicas irmãs.
Na realidade, o que o governo peruano havia feito era enviar um sinal equivocado a seu vizinho e às Forças Armadas deste. Estas, nem tímidas nem preguiçosas, nos três anos seguintes passaram a reforçar discretamente aqueles postos de vigilância até transformá-los em verdadeiras guarnições. Tratava-se de criar uma situação de fato que se mostrasse irreversível. Há provas mais do que suficientes de que o Peru já tinha conhecimento do que estava acontecendo nas cabeceiras do rio Cenepa há meses. Por que não o denunciou à opinião internacional e alertou os avalistas?
A razão foi que entre 1991 e 1994 o Peru havia passado de uma democracia a um regime autoritário e que a primeira prioridade para o engenheiro Fujimori e os militares golpistas que governavam com ele como fachada não era o problema fronteiriço, e sim a perpetuação da ditadura, isto é, a reeleição. O que haveria de melhor para oferecer ao povo peruano, como prato principal da campanha eleitoral, do que uma vitória militar do dirigente contra os invasores do território nacional?
Por incrível que possa parecer —mas não há razão para surpresa; além da brutalidade, a estupidez tem sido consubstancial a todas as ditaduras que temos padecido—, esta parece ser a causa da demora do governo peruano em entrar em ação, com o agravante de que, além de tarde, quando se decidiu a fazê-lo o fez com tanta infâmia que diante boa parte da opinião internacional o Peru não parece agora estar defendendo sua soberania, e sim agredindo seu vizinho.

Copyright Mario Vargas Llosa; direitos mundiais de imprensa do jornal El País

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