São Paulo, terça-feira, 14 de fevereiro de 1995
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"D. Juan" choca elite sexual paulista

ARNALDO JABOR

Da equipe de articulistas Em 1995, um público culto de elite se chocou moralmente com um espetáculo teatral. Como se estivéssemos em 1943, com Nelson Rodrigues, como se estivéssemos nos anos 60, com o Living Theatre nu. Só que o público de "D. Juan", ali no Tuca, na estréia, não confessou nem para si mesmo que se chocou.
Todo mundo ali era descolado, todas as gamas de sexualidade bem assumidas, perversos, fetichistas, gays, experientes bissexuais, garanhões flamejantes, hetairas triunfais, submissos elegantes, discretos sádicos, "partouzards" transnacionais, todos com sua quota razoável de sacanagem vivida, ficaram subitamente travados com o espetáculo que aplaudiram timidamente.
Por quê? Comentavam entre si que "não tinham amado", achavam a montagem excelente, o texto incrível, a música genial, os atores todos do balacobaco, "mas"... Achei que eu tinha ficado maluco e que só eu tinha gostado. Aí bateu a certeza inapelável: as razões estéticas estavam ali para ocultar um mal-estar, uma invasão que o espetáculo tinha feito nas almas sofisticadas.
A peça de Otavio Frias Filho e a montagem de Gerald Thomas desconstroem a sexualidade "resolvida", tiram-na da área moral e jogam-na no limbo embrionário de fantasmas primitivos. Vi que estávamos num momento raro, hoje em dia: reação moral na elite culta. A peça é uma redução fragmentada do mito de D. Juan, transformando o sedutor secular num pobre ginecologista impotente... O texto é perverso como o tema.
Otavio fetichiza momentos luminosos do teatro, sofrendo a dor de narrar e de se perder, quer romper as unidades tradicionais e tem o desejo de "significar". Ou seja, está no centro do drama. Ele extrai como um patologista certas protofantasias de dentro da obra de Nelson Rodrigues e leva-as para mais além da moralidade, revelando sua índole intra-uterina, intestinal: o sonho absolutista de D. Juan —o sexo como permanência narcísica.
Talvez a idéia que informa o texto e a mise-en-scène de Gerald tenha vindo da maior cena escrita por Nelson em sua vida, a mais carregada de camadas visionárias, que é a cena do aborto de Glorinha na peça "Perdoa-me por me Traíres", obra menor com este cume de genialidade dentro. A cena se passa no consultório de um aborteiro, que atende de avental sujo de sangue, chupando tangerinas, e que mata a menina por incompetência e falta d'água, num jato cênico que mistura um Artaud intuitivo com candomblé e com Burroughs muito ante do seu tempo. Só lendo.
Outros lances rodriguianos perpassam, como o Cadelão de "Bonitinha mas Ordinária", estuprador com o nome icônico de cadela bifronte, macho e fêmea. A montagem texto-direção trabalha neste lugar misterioso que Nelson inventou (sua maior sacada), este cabo do meio grotesco e lírico que mistura dor e riso, muito além da tragicomédia clássica, criando uma espécie de pesadelo humorístico, como se, digamos, "Titus Andronicus" fosse levado num circo por palhaços e açougueiros. Vi alguns efeitos semelhantes no "Heliogabalo" de Artaud, em coisas soltas de Greenaway.
"D. Juan" não é analisado por uma fantasia fálica de garanhão, mas é o personagem (como todos nós) perdido num frágil mundo de bebê diante do mistério do útero, lugar traumático de todos os ginecologistas que desejam renascer para dentro. Muito mais forte que o pau do conquistador, se esta peça tiver um símbolo, é muito mais o útero que o pênis, este pobre objeto exterior que sobe e desce como um caniço, um periscópio cego em sua colheita de prazer.
Aqui, ventre e tumba se misturam numa condensação sinistra. Aqui, o sexo surte como um fato protomoral, como uma pergunta física, uma dependência genética diante da morte. E, assim como Otavio desentranha coisas de Nelson, Gerald agarra o texto e faz uma ópera descarnada, ao som da linda música da americana Michelle Dibucci, criando um balé de significantes deslizando, sem clareza de conteúdos, mas de grande densidade alusiva.
Daí meu espanto quando vi que o público de descolados estava com medo da peça. Medo de quê? Eu tinha assistido a uma espécie de pornografia poética. Existe coisa mais próxima da verdade do que a pornografia? O filme pornô vive perigosamente próximo do real que jamais conheceremos, daí seu sucesso, para além da tesão. Na peça, ao contrário de "Anus Dourados" ou de "A Rainha do Rabo", temos uma pornografia humorística com o acréscimo da morte, tudo exibido com uma crua luz de cozinha (quase uma luz só, ao contrário das outras peças de Gerald, onde a luz é sutil e múltipla), com ritmos e trejeitos de bonecos de parque de diversões, de mamulengos de trem fantasma.
Aqui, o próprio expressionismo onírico de Gerald é criticado por ele mesmo, rompendo com a beleza das luzes, partindo para um grotesco que é mais difícil de aceitar que o luxo soturno dos sonhos "incompreensíveis" de outros espetáculos do diretor. Aqui, o texto de Otavio funciona como um dique de realidade para o sonho, o que (ao invés do que Gerald possa até pensar) não é limite para sua criação, mas um fator expansivo.
Não há sonho puro; os sonhos são físicos e ancorados em restos diurnos, em desejos celulares e animais. O Ocidente tende a achar que o inconsciente é o lugar do "fantástico", do "pesadelo", até do sobrenatural. O inconsciente é o lugar mais vagabundo, mais rasteiro do corpo e descobrir isto é aumentar a profundidade das metáforas.
Ligado ao pós-realismo de Otavio, o sonho de Gerald ganhou uma luz sinistra e profunda, o mundo ficou "unheimlich" (não familiar), como diz o próprio Freud, descrevendo a estranheza do mundo dos loucos. Esta junção texto e palco cria um trem de metáforas fantasmas tão duras de suportar quanto a idéia de morte sem céu. Aí é que o espetáculo vira uma metáfora do nosso desamparo diante da utopia sexual.
É novo este novo teatro desagradável pós-Nelson. As metáforas não são vãs; ou seja, aqui o sonho constrói realidades na vigília do palco e o resultado aterrador é uma espécie de Brecht psíquico, em que a luz do fantasma banha o mundo e tudo fica perecível e letal. E dá medo. Ou seja, o que choca não é a exposição moral ou imoral de nada. A moral no mundo só serve para estancar a leitura dos órgãos internos.
O que choca é justamente a não-imoralidade da coisa, uma certa "inocência" orgânica. O público não soube ler a forma, onde mora o sentido. Concluo que nosso público mais culto é realista e conteudista. Dá a desculpa da lógica para se defender. Ao contrário de outras peças de Gerald, o público não gostou porque "não estava compreendendo nada". Em "D.Juan", ele não gostou porque estava compreendendo tudo.

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