São Paulo, terça-feira, 14 de fevereiro de 1995
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Critérios para a moralização do Estado

AZIZ AB'SABER

No passado social de São Paulo, houve grupos de humildes imigrantes, idealistas e sensíveis, que preconizavam um mundo novo, no qual o cruzamento entre a competência e a oportunidade social deveria ser um procedimento normal e uma verdade funcionante. Tal pressuposto era a ideologia do século; tomado como o caminho básico para a realização da democracia.
Teria sido importante que os mentores utópicos desse lema do "self made man" à brasileira tivessem vivido o tempo necessário para entender que não basta ser "preparado" e "competente" para encontrar um lugar no universo de uma sociedade, como teoricamente todos os cidadãos deveriam fazer jus.
O enorme desenvolvimento demográfico, a complexidade dos espaços sociais de diferentes áreas de um país marcado por grandes distâncias, a disparidade e especificidades dos problemas regionais e suas crises econômicas, as mudanças de ótica de diferentes governantes —associadas muitas vezes a atitudes intempestivas de personalidades políticas em equívoco— destruíram os sonhos dos arautos da competência.
Mais tarde, no meio do século, educadores outros —em uma conjuntura social menos desigual e caótica— apregoavam caminhos diferentes, igualmente simplistas, para a funcionalidade das sociedades democráticas. Para tanto, bastaria um tipo de educação, sustentado por um monolítico tripé de objetivos.
Propagava-se um processo educacional que importasse na aquisição de uma filosofia de vida, um preparo bem cuidado para o encontro de um lugar socioeconômico, segundo as potencialidades e vocações de cada um, e, por fim, uma parceria com o gênero oposto para o estabelecimento de um núcleo familiar, numa alusão direta às necessidades biológicas e reprodutivas. E, assim, as gerações se sucederiam e se integrariam, no melhor dos mundos.
O tempo iria demonstrar que ambos estavam bastante errados em suas previsões, tão radicais quanto incompletas. Não se levava em conta as dimensões do mercado de trabalho em cotejo com a irresponsabilidade da fertilidade humana; as crises econômicas e as atenuações catastróficas dos ímpetos desenvolvimentistas.
Não se podia prever o impacto das novas tecnologias, sobretudo da robotização, em termos de economia do volume da mão-de-obra. Tampouco atentava-se para as convulsões criadas por mudanças de gestões político-administrativas.
O certo é que, neste fim de século, em países de desenvolvimento desigual (injustos porque subdesenvolvidos), por mais competência que alguém possa ter ou adquirir —seja pelo roteiro da educação ou pelos transversos caminhos da vida—, as oportunidades para a inserção socioeconômica são dramáticas e altamente problemáticas.
O fim do milênio, um pouco por toda a parte, é o palco do mais tremendo império da injustiça social e cultural, sobretudo para jovens egressos de universidades que se desesperam em busca do seu pedaço no interior do estrangulado mercado de trabalho.
É evidente que em países onde o subdesenvolvimento além de econômico é também moral, cultural e ético tal império atinja níveis impensados, enquanto as universidades e escolas superiores continuam a despejar legiões de novos diplomados no mercado.
Neste, filhos de privilegiados terão sempre preferência. Ocuparão, com ou sem competência, os melhores postos e lugares nas empresas ou na administração pública. Incólumes à crítica e às avaliações de desempenho, cercados por um fantástico contingente de excluídos, sofridos, vencidos e humilhados.
Numa democracia que busca consolidação, seria de esperar que passagens de governos fossem menos nervosas e traumatizantes. Moralizar o Congresso e estender a moralização a todos os escalões do Executivo e Judiciário —para que a Justiça seja mais eficaz e menos formalista e subjetiva— é um ato de esperança indispensável. Mas sem o impacto da falta de critérios nos procedimentos de demissões indiscriminadas de funcionários dependentes de contratos ditos provisórios.
Qualquer medida que envolva ausência de critérios pode provocar justas revoltas e indignação em toda uma assembléia de cidadãos que se sentem prejudicados, humilhados e sem ter a quem recorrer para demonstrar do que foram e são capazes de desenvolver. Lastreados pela experiência do passado, é possível evitar tanto trauma e dramas familiares nessa operação de lipoaspiração do aparelho estatal, sem correr-se o risco de amputações irreversíveis...
O mais lógico, ético e democrático seria a identificação imediata dos "fantasmas" das folhas de pagamento e a sua exoneração pura e simples, a bem do serviço público. Através de verificação criteriosa, enxugue-se os inadimplentes e incompetentes da máquina.
Por meio de comissões bem organizadas, sob critérios seletivos bem elaborados, incluindo entrevistas prévias, abram-se concursos sérios e diferenciados para todos os que estão trabalhando, franqueados a todos quantos pretendam entrar na disputa por um lugar.
Em qualquer hipótese, em nome da ética e do verdadeiro espírito da democracia, não cometam o crime histórico de uma dispensa maciça daqueles que procuraram e encontraram emprego e trabalho. Esses nada têm a ver com o processo esdrúxulo de "terceirização", vigente desde alguns anos, para contratação de funcionários para diferentes secretarias e empresas estatais paulistas.
No caso particular dos que têm um bom currículo técnico e científico e experiência comprovada, não é possível abstrair o custo e o valor social do investimento feito pelo próprio Estado na formação e qualificação dessas pessoas. Simetricamente, a coisa mais simples do mundo é a identificação dos inadimplentes insensíveis que poluem criminosamente as folhas de pagamento do serviço público.

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