São Paulo, quinta-feira, 16 de fevereiro de 1995 |
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Texto revela influência de Dante e Kafka
JOSÉ GERALDO COUTO
Ao contar as desventuras pós-morte (ou seria apenas um longo pesadelo?) do violoncelista Giuseppe Mastorna, o diretor assumiu uma linguagem onírico-visionária próxima à de filmes como "Oito e Meio", "A Cidade das Mulheres" e "A Voz da Lua". Só que em "Mastorna" tudo parece mais nebuloso, rico em nuances e, paradoxalmente, claro. A história começa numa viagem de avião entre Hamburgo e Florença, onde o músico deverá participar de um concerto. Sobre os Alpes, uma tempestade obriga o avião a um pouso de emergência na praça de uma cidade. Nesse lugar estranho, que Fellini esboça como uma mistura de cidades conhecidas com outras imaginárias, tudo escapa progressivamente do realismo: a língua falada pelos habitantes, a arquitetura cambiante dos edifícios, os ritmos do tempo, o comportamento geral. Perplexo, Mastorna procura um meio de voltar ao avião para retomar o vôo, mas se aprofunda cada vez mais numa realidade de pesadelo. A certa altura, vê um amigo morto há anos e conclui que ele mesmo deve estar morto. A partir daí, sucedem-se as situações mais diversas e absurdas: reencontros com parentes e amigos de juventude, tentativas vãs de telefonar ou telegrafar à mulher, programas televisivos de auditório, concursos, festas, bacanais. As referências mais evidentes desta exuberante fantasia felliniana são Dante e Kafka. As sucessivas etapas da peregrinação de Mastorna remetem às subdivisões do inferno, do purgatório e do paraíso do poeta florentino —só que com a objetividade absurda do autor de "O Processo". Na cosmogonia de Fellini, o inferno é a memória, que aprisiona o indivíduo às lembranças dolorosas tanto quanto à nostalgia paralisante. Curiosamente, em "Amarcord", talvez o grande filme que o diretor fez nas décadas seguintes, a memória é tratada, opostamente, sob um viés lírico e benigno. O paraíso, por sua vez, é a vida de todo dia, só que vista e sentida como pela primeira vez —com o frescor e o apaziguamento de uma postura quase zen. Quem viu os filmes realizados por Fellini nas últimas décadas vai reconhecer elementos de todos eles em "Mastorna": a mundanização do Vaticano de "Roma", a estrutura de pesadelo de "A Cidade das Mulheres", tipos e locais riminianos de "Amarcord", o ensaio de orquestra do filme homônimo, o programa de TV de "Ginger e Fred", o cemitério de "A Voz da Lua"... Obra-prima de imaginação e competência narrativa, "Il Viaggio di G. Mastorna" pode ser lido com prazer mesmo por quem não gosta de ler roteiros. A capacidade descritiva e evocativa do cineasta dão ao leitor a impressão de estar "vendo" um filme de Fellini. Ao fim da leitura, chega-se à certeza melancólica de que o único cineasta capaz de transformar em imagens tamanha riqueza de fantasia seria, é claro, Fellini. (JGC) Livro: Il Viaggio di G. Mastorna Autor: Federico Fellini Onde encomendar: Livraria Italiana (tel. 011/259-8915), por R$ 29,70 Texto Anterior: Fellini retrata morte em filme não-realizado Próximo Texto: Masp apresenta a arte do Cone Sul Índice |
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