São Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1995
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PT perde o charme de ser 'alternativo'

MARCELO COELHO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Os 15 anos de existência do PT foram comemorados num baile de certo sabor passadista, ao som do "Danúbio Azul". Nada contra o "Danúbio Azul" —e não se deve negar a ninguém, nem mesmo a Lula, o direito de gostar de uma bela valsa ou de um bom charuto.
Mas é o "passadismo", a rigor, o que deve ser posto em discussão. De um lado, o PT surge na opinião pública como o eterno defensor de teses hoje em dia consideradas retrógradas —a defesa da Petrobrás, o nacionalismo dos anos 50 etc. De outro, os próprios intelectuais petistas se vêem, com o aniversário do partido, forçados a uma reinterpretação da experiência acumulada.
E, como o PT manteve, ao longo destes anos, uma imagem relativamente sólida e coerente, é preciso um especial esforço de memória para entender o que mudou no partido, o que já se distancia de seu projeto inicial.
Sem aspirar à agilidade de um Francisco Weffort nesse gênero de avaliações, arrisco-me à retrospectiva.
O PT certamente não tem o charme de seus tempos iniciais; Perseu Abramo, em artigo publicado há uma semana na Folha, aponta para o problema.
Onde estava o charme do petismo em 1980? Em alguns fatores, a meu ver. O primeiro foi o de apostar numa aceleração, e numa radicalização, do processo democrático. A estratégia de uma passagem lenta, gradual e segura do autoritarismo à democracia, mais ou menos encampada pelo PMDB, conheceu a afoiteza das greves de S. Bernardo, a exigência de uma Assembléia Constituinte e um tom zangado, impaciente, graças ao qual o PT fermentou o vai-não-vai da democratização.
Nesse sentido, ser petista, em 1980, era não somente ser contra o regime militar, mas ser contra os cuidados com que o PMDB conduzia a luta pela democratização.
Isso era muito atraente. Também atraente era o fato de que o PT, em seus inícios, acomodava-se malíssimo aos dogmas da esquerda ortodoxa. Enquanto os velhos comunistas, defendendo sempre a idéia de uma "unidade das oposições", continuavam no PMDB; e enquanto os trotskistas consideravam Lula um pelego, o PT era uma espécie de esquerda como nunca se vira; mais à esquerda do que os marxistas-leninistas tradicionais, mas simpático ao sindicalismo polonês, indiferente à herança getulista.
Tratava-se, em suma, de um partido "alternativo". Ou seja, uma esquerda que não sabia bem se era socialista, uma oposição que não era peemedebista, um sindicalismo que não era atrelado, tudo com fortes contingentes de juventude e traços libertários no que diz respeito à gestão da vida cotidiana.
Por isso mesmo, o PT atraiu setores sociais de formação recente na história do Brasil: a camada universitária e intelectual que crescera durante os anos 70, aliada ao novo operariado que desconhecia as tradições do peleguismo e a uma classe média estranhamente aventurosa e alheia a caretices.
O que mudou, desde aquela época? É que o PT, de partido "alternativo", passou a ser o partido da oposição. À medida que o PMDB foi assumindo o poder, numa estratégia de transição conservadora, o PT foi crescendo pela incorporação dos setores excluídos desse processo.
Grupos de esquerda ortodoxa, por exemplo, disputaram com maior ou menor sucesso o privilégio de "fazer a cabeça" do Lula. A aposta do PT numa maior organização da sociedade levou a um amálgama entre o partido e as comunidades de base da Igreja. Militâncias atrasadas, do gênero PC do B, entraram em aliança objetiva com o PT.
A base, ou melhor, "as bases" de que o PT tanto falava deram-lhe o peso, a força de gravidade; mas sem a graça e a leveza dos anos iniciais.
Enquanto isso, o que ocorria "lá em cima", no Estado? Ocorria um processo de democratização que levava o PT a apresentar-se, por bem ou por mal, como alternativa às eleições que iam acontecendo.
Por paradoxal que pareça, a democracia trouxe novos problemas ao PT. Sua aposta inicial, ainda hoje eloquente, era a de uma organização dos setores populares. Trabalho pedagógico, comunitário, no plano microssocial das vizinhanças e associações de bairro. Mas o PT também tinha de lançar candidatos no plano "macro": prefeituras, governos, presidência.
Paralelamente, seu discurso teve de se dividir. Pois de um lado há o apelo, a denúncia da miséria, a luta em defesa dos grupos desorganizados da população. E de outro lado o PT depende de uma militância "organizada", ou seja, a dos sindicatos bem constituídos, dos funcionários públicos, dos professores etc.
As caravanas de Lula expressam bem esse problema. Impunha-se levar a mensagem do PT aos "grotões" miseráveis —onde, aliás, promessas de redenção social devem soar iguais se vindas de Lula ou de ACM. Impunha-se, também, manter precariamente o charme junto à classe média. Fora isso, resolver o problema do corporativismo dos grupos sociais em que o PT encontrava sua base tão querida.
E, enquanto caía o muro de Berlim, a defesa de Cuba tornou-se ponto de honra no discurso petista.
A meu ver, o PT se encontra hoje sitiado, pelo menos, em quatro frentes. A frente dos miseráveis desorganizados, aos quais, por princípio, deveria organizar, mas que pela contingência eleitoral se vê sempre forçado a tratar como público nos palanques ou telas de TV. A frente da classe média avançadinha, que ainda confia na heterodoxia e na modernidade do partido. A frente dos organizadores e militantes, pouco avançados, corporativos, igrejeiros. E a frente da cúpula, cuja antiga experiência no setor público (Luiza Erundina) ou cuja confiança na racionalidade do Estado e desencanto com as demais frentes (Weffort) levam-na a aderir a projetos na aparência (só na aparência) mais viáveis.
Entre essas quatro frentes (esqueci-me de mais uma: a frente dos parlamentares do PT), entre tudo isso, temos Lula, administrando o partido como um Ulysses Guimarães.
Não é o caso de tocar um tango argentino, como no verso fúnebre de Manuel Bandeira. Mas uma valsa vienense, a esta altura, até que vem a calhar.

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