São Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1995
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Martha Kardos carregava nos erres

NINA HORTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Martha Kardos, professora de culinária, morreu na semana passada. Há uns 15 anos, fui atrás dela, por causa de uma saladinha de beterraba com pepino onde eu havia sentido um toque de gênio. Na época, ela deveria ter lá seus 73 anos.
Os cursos começavam a tal hora de tal dia e se você não pudesse assistir à primeira aula, nada feito, tinha que esperar um ano. "Dona Martha, estou há meses na fila, não dá para esquecer que faltei, uma vezinha só?"
Martha tinha um sotaque forte e carregava nos erres, como austríaca que era, o que ajudava a estruturar a aparência de severidade. "Não e não. Na primeira aula ensino os cortes de alcatra e molho branco. In-dis-pen-sá-vel."
E quando se assistia àquela aula de bechamel, via-se a luz. Todo um ritual, uma dramatização a la Martha, que fazia o corriqueiro tornar-se importante. Um pouco de sal. Provar. Limão? Talvez. Noz-moscada com certeza. Pimenta-do-reino moída na hora. Ah! Empelotou... Eu não disse?" E partia para consertar o mal feito, coisa em que também era mestra.
Orgulhava-se, com razão, de não ensinar a fazer pratos, mas a cozinhar. Começava pelas compras. Os ingredientes tinham que ser perfeitos e a aluna, econômica. Se a receita pedia uma xícara de farinha de trigo e a esbanjada aparecesse com um pacote de meio quilo fechado por comodidade, era reduzida a pó de mico.
Um prato levava sete fígados de pato. A noviça desavisada chegou com sete patos e seus sete fígados. Foi a desonra, a humilhação suprema e, o pior de tudo, sem palavras. Só em clima.
O brasileiro é um perdulário. Dona Martha estendia este preconceito até às frutas tropicais. "Elas têm caroço demais, sobra pouca polpa. Reparem no abacate e na manga, que desperdício!"
Tudo isso não resultava em mesa pobre, mas extremamente elegante, como se via no cafezinho perfeito que oferecia a cada aula, na cozinha repleta de utensílios adequados a serem usados na hora certa e recolocados imediatamente no mesmo lugar. Louça bonita, bandeja com design de Alfred Loos, linho engomado, torradas fragrantes de manteiga e canela...
Ia-se aprendendo e bem. Não era uma cozinheira que dava aulas, mas uma mulher integrada no seu tempo, afinada com o resto do mundo, humor alemão, cheia de opiniões. Assinava a "New Yorker" em parceria com uma amiga e fazia um rodízio da revista, cujos tópicos discutia entre um pão crescido na água e um suflê de espinafre. Se as alunas e alunos quarentões morriam de medo dela e revertiam ao jardim de infância, o que não dizer das empregadas que passavam pela casa?
Queria treiná-las à Viena "fin-de-siècle", instrumentadoras eficientes, cheias de escrutínio e bom senso. Fracasso total. Passavam aos bandos, atônitas, e fugiam de fininho, apavoradas com a disciplina e com o menu diário de sardinhas cruas no vinagre, língua em salitre, compotas de ameixa fresca, frango à Chambertin e Gleichgewichtskuchen, sem mencionar a torta de papoulas.
Ao envelhecer, em idade, jamais em garra e sabedoria, foi ficando mais tolerante com tudo e com todos, mas jamais, jamais poupou alguém de uma crítica. "Você pode traduzir, ler e escrever quantos livros de cozinha quiser, mas isto não faz uma cozinheira." Ou: "Muito obrigada pelas ameixas, mas se me permite, estavam azedas como limão".
Depois dos 80 anos aprendeu a compartilhar. Soltou receitas trancadas em alemão gótico, enxergou qualidades e amou rijas domésticas alimentadas a feijão com arroz, como "Terresa" e "Laurra".
Abençoou alunas que partiram para seus negócios próprios com as receitas dela na bagagem. Foi sempre a mais fiel das amigas, abrindo-se em delicadezas de alma, em amostras de coragem e alegria de viver. "Envelhecer bem é principalmente conhecer seus limites", dizia ela.
Ah, Martha, Martha! Depois de tantos sustos que nos pregou e dos quais renasceu como fênix, tínhamos uma quase certeza que sobreviveria a todos nós, moços e velhos, e que talvez não morresse nunca. E desconfio que é o que vai acontecer. Seus alunos, donas de casa, "caterers", doceiros, pizzaiolos, críticos de gastronomia, restaurateurs, professores, vamos passar o resto da vida com você nos nossos calcanhares.
Pele de pêssego, lenço Hermès no pescoço, cabeça curvada para o lado, colherinha de chá na mão, huum, huum, provando, reprovando e aprovando. Vida afora, a cada dia, vamos continuar lutando por sua nota dez.

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