São Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1995 |
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Martha Kardos carregava nos erres
NINA HORTA
Os cursos começavam a tal hora de tal dia e se você não pudesse assistir à primeira aula, nada feito, tinha que esperar um ano. "Dona Martha, estou há meses na fila, não dá para esquecer que faltei, uma vezinha só?" Martha tinha um sotaque forte e carregava nos erres, como austríaca que era, o que ajudava a estruturar a aparência de severidade. "Não e não. Na primeira aula ensino os cortes de alcatra e molho branco. In-dis-pen-sá-vel." E quando se assistia àquela aula de bechamel, via-se a luz. Todo um ritual, uma dramatização a la Martha, que fazia o corriqueiro tornar-se importante. Um pouco de sal. Provar. Limão? Talvez. Noz-moscada com certeza. Pimenta-do-reino moída na hora. Ah! Empelotou... Eu não disse?" E partia para consertar o mal feito, coisa em que também era mestra. Orgulhava-se, com razão, de não ensinar a fazer pratos, mas a cozinhar. Começava pelas compras. Os ingredientes tinham que ser perfeitos e a aluna, econômica. Se a receita pedia uma xícara de farinha de trigo e a esbanjada aparecesse com um pacote de meio quilo fechado por comodidade, era reduzida a pó de mico. Um prato levava sete fígados de pato. A noviça desavisada chegou com sete patos e seus sete fígados. Foi a desonra, a humilhação suprema e, o pior de tudo, sem palavras. Só em clima. O brasileiro é um perdulário. Dona Martha estendia este preconceito até às frutas tropicais. "Elas têm caroço demais, sobra pouca polpa. Reparem no abacate e na manga, que desperdício!" Tudo isso não resultava em mesa pobre, mas extremamente elegante, como se via no cafezinho perfeito que oferecia a cada aula, na cozinha repleta de utensílios adequados a serem usados na hora certa e recolocados imediatamente no mesmo lugar. Louça bonita, bandeja com design de Alfred Loos, linho engomado, torradas fragrantes de manteiga e canela... Ia-se aprendendo e bem. Não era uma cozinheira que dava aulas, mas uma mulher integrada no seu tempo, afinada com o resto do mundo, humor alemão, cheia de opiniões. Assinava a "New Yorker" em parceria com uma amiga e fazia um rodízio da revista, cujos tópicos discutia entre um pão crescido na água e um suflê de espinafre. Se as alunas e alunos quarentões morriam de medo dela e revertiam ao jardim de infância, o que não dizer das empregadas que passavam pela casa? Queria treiná-las à Viena "fin-de-siècle", instrumentadoras eficientes, cheias de escrutínio e bom senso. Fracasso total. Passavam aos bandos, atônitas, e fugiam de fininho, apavoradas com a disciplina e com o menu diário de sardinhas cruas no vinagre, língua em salitre, compotas de ameixa fresca, frango à Chambertin e Gleichgewichtskuchen, sem mencionar a torta de papoulas. Ao envelhecer, em idade, jamais em garra e sabedoria, foi ficando mais tolerante com tudo e com todos, mas jamais, jamais poupou alguém de uma crítica. "Você pode traduzir, ler e escrever quantos livros de cozinha quiser, mas isto não faz uma cozinheira." Ou: "Muito obrigada pelas ameixas, mas se me permite, estavam azedas como limão". Depois dos 80 anos aprendeu a compartilhar. Soltou receitas trancadas em alemão gótico, enxergou qualidades e amou rijas domésticas alimentadas a feijão com arroz, como "Terresa" e "Laurra". Abençoou alunas que partiram para seus negócios próprios com as receitas dela na bagagem. Foi sempre a mais fiel das amigas, abrindo-se em delicadezas de alma, em amostras de coragem e alegria de viver. "Envelhecer bem é principalmente conhecer seus limites", dizia ela. Ah, Martha, Martha! Depois de tantos sustos que nos pregou e dos quais renasceu como fênix, tínhamos uma quase certeza que sobreviveria a todos nós, moços e velhos, e que talvez não morresse nunca. E desconfio que é o que vai acontecer. Seus alunos, donas de casa, "caterers", doceiros, pizzaiolos, críticos de gastronomia, restaurateurs, professores, vamos passar o resto da vida com você nos nossos calcanhares. Pele de pêssego, lenço Hermès no pescoço, cabeça curvada para o lado, colherinha de chá na mão, huum, huum, provando, reprovando e aprovando. Vida afora, a cada dia, vamos continuar lutando por sua nota dez. Texto Anterior: LEVANTE; PÃO, PÃO; OUTONO Próximo Texto: JAPÃO; PIZZA; CAFÉ; MÚSICA; CARNE; MASSA Índice |
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