São Paulo, sexta-feira, 17 de fevereiro de 1995
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Davos, Chiapas & Rio

TELMA DE SOUZA

Entre as principais deduções dos dois últimos fóruns da economia mundial, realizados em Davos (Suíça) e relatados até com exclusividade por esta Folha, está a de que o crescimento econômico por si só não garante a recuperação do emprego, nem a melhoria das condições sociais das populações.
Trata-se de tema segundo o qual as grandes personalidades frequentadoras daquele fórum concluíram haver necessidade de aprofundamentos, na busca de soluções para evitarem-se desequilíbrios detonadores de outros conflitos nas sociedades. A economia mundial voltou a crescer, tanto quanto a brasileira, mas nem por isso seus efeitos são capazes de recuperar os estragos aumentados no longo tempo de recessão.
O governo do presidente Fernando Henrique Cardoso, nesse sentido, já perde precioso tempo e parece aceitar aquele fenômeno mundial, ao prosseguir na propaganda dos benefícios do Plano Real, sem sinalizar com programas urgentes para melhoria das condições sociais do brasileiro.
Em seu discurso de um mês de mandato, FHC voltou a bater em "defuntos-mortos", com série de autolouvações e justificativas, bem a gosto da situação, mas de reduzido, se não nulo efeito prático. Ao contrário, a sociedade, no mesmo dia, conheceu, por dados da Fundação Getúlio Vargas, que o Brasil encerrou o ano de 1994 com 9,9 milhões de desempregados, o equivalente a 14,3% da população economicamente ativa.
O número é elevado e preocupante porque ele se dá num meio social já deteriorado e cuja reversão exige mais do que um plano de estabilização da economia. Esse é o cerne da questão de Davos.
Alguns fatos locais e internacionais corroboram essa preocupação, a exemplo dos guerrilheiros de Chiapas, no México, e da intervenção das Forças Armadas nas favelas cariocas. Algo tem havido na sociedade mexicana para justificar as suas revoltas regionais, exatamente numa fase de exaltação do liberalismo que comandou aquela economia, como de grandes inversões nas empresas do país.
Agora sabemos com mais clareza que aquele consenso não passou de uma orquestração em favor dos capitais especulativos, os mesmos que andam rondando a Argentina e o Brasil, para ficarmos mais próximos dos fatos. Infelizmente, o preço da saída mexicana é quase o da entrega de sua soberania para os financiadores internacionais. Chiapas, portanto, tem sua razão de ser à medida que as intervenções econômicas, ou os programas de estabilização, após longos períodos de alta inflação, deixam de reconhecer as agruras das periferias.
No Brasil, não temos Chiapas, mas sobram-nos favelas, violência urbana e rural, afrontas aos direitos dos cidadãos e à ordem institucional e jurídica. Não se sabe o que é mais danoso, ou penoso, na contraposição de uma guerrilha localizada e uma guerrilha urbana, onde o cidadão é arrancado do interior de sua moradia e levado para local desconhecido.
As Forças Armadas, com todo seu esforço, já perceberam que seu papel é limitado nesse terreno. A criminalidade não baixou na medida das expectativas porque os problemas são mais profundos.
FHC governa para um país com taxa de mortalidade infantil vergonhosa, qual seja, de 55 crianças por mil nascidas, número que em alguns Estados nordestinos ultrapassa a 80. Sob essa perspectiva, não cabem mais discursos acadêmicos, como se o Brasil fosse uma gigantesca sala de aula.
Para um governo que praticamente começa sem oposição, perigoso anestésico, convém lembrar, os dados da "estabilidade" podem satisfazer, tanto que até agora não houve qualquer sinalização de impacto no sentido de reverter os nossos abismos sociais. A sociedade mais ampla, fora do alcance da mídia, que potencializa os anestésicos, no entanto, ainda vive o Brasil de antes, real e humanamente injusto.

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