São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Nhenhenhém foi cálculo e não distração

JOSIAS DE SOUZA
DIRETOR-EXECUTIVO DA SUCURSAL DE BRASÍLIA

Ao cunhar a expressão "nhenhenhém neoliberal", Fernando Henrique Cardoso, 63, não buscava apenas distanciar-se de um rótulo que tentam grudar em sua biografia "social-democrata". O gesto do presidente foi medido.
Tratou-se de resposta antecipada a um movimento detectado pelo Palácio do Planalto. Nas próximas semanas, a esquerda nacionalista tentará "ideologizar" o debate sobre a reforma da Constituição.
A Frente Parlamentar Nacionalista, com mais de 30 integrantes, trabalhará para transformar a crise do México numa espécie de "muro de Berlim dos neoliberais", Fernando Henrique incluído.
"O México representa a ruína moral do nefasto caminho do neoliberalismo", dá o tom o deputado Aldo Rebelo (PC do B-SP). "O presidente diz que não é neoliberal. Mas, para nós, ele é".
Não se imagine que o discurso nacionalista é monopólio de sobreviventes comunistas. Ele pode ser encontrado também no PSDB de Fernando Henrique. "Ao tomar posse, o presidente disse que deveríamos aposentar velhos dilemas ideológicos", diz o deputado Domingos Leonelli (PSDB-BA). "Mas é preciso que a direita também aposente os seus dilemas, tais como a liberalização a qualquer preço, a privatização desenfreada e a tese do Estado mínimo".
Ao lado de pessoas como Almino Afonso (PSDB-SP), o baiano Leonelli terá dificuldades em votar a favor da quebra do monopólio do petróleo proposta pelo governo.
Aliás, a fórmula afinal adotada pelo governo nessa matéria, expondo a Petrobrás à concorrência privada, foi sugerida pelo PFL de outro baiano, o senador Antônio Carlos Magalhães, hoje ideologicamente muito mais próximo de FHC do que o tucano Leonelli.

"Abra o olho"
O presidente será utilizado como garoto propaganda da "esquerda jurássica", como se diz nos gabinetes do governo. A principal peça da campanha anti-reformista é um recente elogio de Fernando Henrique às economias do México e da Argentina.
Seus comentários, gravados em fita de rolo, foram resgatados por Aldo Rebelo. Serão agora impressos num tablóide chamado "Abra o Olho", com tiragem prevista de 100 mil exemplares. Rebelo carrega notas taquigráficas com as frases do presidente como se transportasse ouro.
Fernando Henrique era ministro da Fazenda de Itamar Franco. No dia 5 de janeiro de 94, compareceu a uma comissão do Congresso para defender o seu Fundo Social de Emergência e a URV, embrião do Real. Para convencer os parlamentares, fez futurologia.
"O que vai acontecer é que, quando esse programa for aprovado, haverá um 'boom'. Isso eu não digo porque queira, mas porque aconteceu assim na Argentina, no Chile, no México. E estabilizou a economia".
Fernando Henrique aconselhava os congressistas a arquivar a aposta na catástrofe quando Aldo Rebelo interveio: "Na Argentina e no México, ministro, já há uma certa rebelião social".
Num raciocínio em que citou Descartes e Marx, Fernando Henrique respondeu que, "como ratinho de laboratório", o Brasil havia aprendido com a experiência alheia. Por isso não optaria pela dolarização clássica.
Mas, novamente, desaconselhou a aposta no caos. Referindo-se aos vizinhos, disse: "A economia tem as suas regras objetivas e, em certos momentos, tem crises. Aí não há governo que segure. Só que nós estamos no ciclo oposto. Nós estamos no ciclo de começo de expansão do mundo".

"Protoneoliberal"
Na guerra ideológica que se arma, FHC encontra socorro justo no grupo que deserdou no discurso do "nhenhenhém".
O deputado Roberto Campos (PPR-RJ), totem dos liberais, enxerga o presidente como um recém-convertido, um "protoneoliberal", como diz. Delfim Netto (PPR-SP), da mesma tribo, acha que, ao rejeitar o rótulo, FHC "entra no jogo da esquerda".
Delfim ensina: "A esquerda é previsível. Para destruir uma boa idéia, a primeira coisa que faz é colocar-lhe um rótulo. Por isso, associa a expressão neoliberal à idéia do Estado fraco. Uma tolice com a qual o presidente não deveria se preocupar".
Campos e Delfim afirmam que o caso mexicano em nada abalou o modelo que professam. O México foi à lona, na visão de ambos, não por suas virtudes liberais, mas por seus defeitos intervencionistas.
Roberto Campos lista as três razões que, a seu ver, conduziram os mexicanos à crise: 1) a intervenção governamental para manter o câmbio sobrevalorizado, uma técnica "dirigista e não liberal"; 2) a subida dos juros nos EUA, que tornou o investimento no México desinteressante; 3) a instabilidade política —"não há nada mais atrasado em termos políticos do que o PRI".
O que mais preocupa Roberto Campos não é o México, mas a possibilidade de que o governo seja "acometido de uma recaída esquerdista". Ele menciona frase do ministro Sérgio Motta (Comunicações), que negou a intenção de privatizar as telecomunicações.
"Com essa declaração, ele reduziu em um terço as ações da Telebrás. Normalmente, diria que se trata de um macaco em loja de louças. Mas, em respeito às dimensões do ministro, estamos diante de um elefante em casa de louças".

Divina Previdência
Outro tema que produzirá polêmicas é a reforma da Previdência. O ministro Reinhold Stephanes prevê que uma das batalhas mais renhidas será travada em torno da proposta que defende o fim da aposentadoria por tempo de serviço.
O ministro esgrime um bom argumento em defesa das suas teses: "No Brasil, pobre não se aposenta por tempo de serviço, mas por idade". Segundo o seu raciocínio, o atual modelo de aposentadoria beneficiaria os mais ricos, as categorias mais bem-organizadas.
Em última análise, o pobre estaria trabalhando para sustentar a aposentadoria dos mais afortunados. "Seguramente, não há no país mais do que 10% de trabalhadores com salários de até cinco mínimos que tenham se aposentado por tempo de serviço".
Portanto, 90% dos assalariados de baixa renda aposentam-se depois dos 60 anos. O curioso é que os maiores defensores do atual modelo são os sindicalistas, em tese defensores da classe operária.
Stephanes não dispõe propriamente de estatísticas. Diz ter feito uma pesquisa pessoal em 1988. E recorre a números oficiais esparsos. Um deles refere-se à área rural: a idade média do trabalhador do campo aposentado é de 62 anos. O dado, ainda fresco, refere-se ao ano de 1993.
Outro argumento do ministro: conforme o IBGE, praticamente metade da população economicamente ativa do país (49%) está no mercado informal. Um trabalhador de baixa renda permaneceria, em média, pelo menos cinco anos na informalidade. São cinco anos a menos na contagem do tempo de aposentadoria.
Supondo-se uma pessoa que comece a trabalhar aos 20 anos, descontados os cinco, ela só atingiria os 35 anos necessários à aposentadoria aos 60 anos.
Quanto às categorias mais organizadas, capazes de sustentar poderosos lobbies, estas se beneficiam de uma série de artifícios, como a contagem de licença-prêmio em dobro, para mencionar uma única vantagem. Assim, podem se aposentar mais cedo. Recebem aposentadoria do erário e, ainda jovens, recolocam-se no mercado de trabalho.
Estão entre os privilegiados juízes, desembargadores, professores e até jornalistas. Estes últimos têm à sua disposição as chamadas aposentadorias especiais, que lhes proporcionam a aposentadoria após 25 anos de trabalho, se mulher, ou 30, no caso dos homens.

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