São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Inflação, distribuição da renda e salário mínimo

PAUL SINGER

Agora que o presidente Fernando Henrique Cardoso já vetou o aumento do salário mínimo para R$ 100,00 e o senador Antonio Carlos Magalhães (PFL-BA) declarou que ajudaria a derrubar o veto a não ser que o governo envie ao Congresso as medidas que considera necessárias para viabilizar o aumento, pode ter chegado o momento de analisar a questão sobre prisma mais amplo.
Primeiro, os fatos. O valor real do SM (salário mínimo) foi sendo arrochado por todos os governos, militares e civis, autoritários e democráticos, durante os últimos 30 anos.
Em reais de dezembro de 1994, o SM médio de 1965 foi de R$ 360,23 e nunca mais atingiu esta altura. Dez anos depois, em 1975, tinha caído para R$ 229,92, ficando 36% menor do que em 65. Em 1985, o SM médio foi de R$ 215,12, já na Nova República, 6% menor que em 75.
No fim do mandato de Sarney, em 1989, o SM foi em média de R$ 164,46, 23% menor do que em 85. Na gestão de Collor, o arrocho foi de 36%, pois o SM, em 1992, caíra a R$ 105,34. Finalmente, no mandato de Itamar, de quem FHC foi ministro, o SM caiu ainda mais, para R$ 91,64 em 1994, 13% menor que o de 92.
Entre 1965 e 1994, o SM perdeu três quartos do seu poder de compra, 42% durante os 19 anos de regime militar (65-84) e mais 56% do que restou do SM durante os dez anos de regime civil (cálculos sobre dados do Dieese).
Dado o enorme desgaste do SM, pergunta-se se ainda assim ele influencia a distribuição da renda. Só há dados publicados das Pesquisas Nacionais por Amostra de Domicílios (PNAL) até 1990. Não parece restar dúvida de que entre 1986 e 1990 o SM influenciou nitidamente o rendimento mensal dos 30% de ocupados de menor renda.
Em cruzeiros de setembro de 1990, o SM era de Cr$ 10.142 em 1986 e caiu para Cr$ 6.056 em 1990. O rendimento médio do décimo acima dos 20% mais pobres caiu de Cr$ 10.130 em 1986 para Cr$ 6.189 em 1990. Nos anos intermediários, o SM e o rendimento deste decil também foram muito próximos.
Mesmo que o SM não seja o único determinante do que ganha o terço mais pobre dos brasileiros, é certo que é o fator mais importante. O salário mínimo não é apenas o piso do que é pago aos empregados registrados das firmas; ele é também referência para o pagamento dos empregados informais, prestadores de serviços etc. Tudo indica que o salário mínimo é a base de pagamento por trabalho pouco qualificado no Brasil inteiro.
Entre 1986 e 1990, o Índice de Gini da distribuição de renda das pessoas ocupadas no Brasil subiu de 0,584 para 0,602, denotando nítida concentração da renda nesse período. Em 1986, a renda média dos 30% mais pobres era 19,1% da renda média de todos os ocupados; quatro anos depois, esta proporção tinha caído para 16,3%.
Pode parecer pouca coisa, mas em 1986-90 a renda média real de todos os ocupados caiu 26,6%, ao passo que a renda média dos 30% mais pobres caiu 37,7% (dados calculados pelo IBGE, a partir das PNADs).
Este último dado mostra que houve um empobrecimento geral do trabalhador, mas um empobrecimento ainda muito maior dos pobres, de quem obviamente não podia empobrecer mais. Como neste período o SM perdeu cerca de 40% de seu valor real, tudo leva a crer que ele foi o principal causador do empobrecimento dos 30% mais pobres.
O aumento do SM de R$ 70,00 para R$ 100,00 representaria uma elevação de 43%. Em 1990 (último dado disponível), os 30% mais pobres ganhavam 4,9% da renda de todos os ocupados do Brasil. Como a maioria destes 30% não tem emprego registrado, não seria de se presumir que a sua renda média aumentaria exatamente tanto quanto o SM, mas vamos trabalhar com esta hipótese para ver o que acontece.
O aumento do SM para R$ 100,00 elevaria a renda dos 30% mais pobres de 4,9% para 7,0% do total anterior, ou seja, expandiria a renda total dos ocupados em 2,1%, supondo que a renda dos ocupados acima dos 30% mais pobres não seja afetada pelo aumento.
Em outras palavras, os que têm seus ganhos influenciados pelo salário mínimo representam uma parcela tão minúscula da massa salarial, que esta cresceria apenas 2,1% se eles tivessem um aumento salarial de 43%.
Mesmo que se suponha que os beneficiados pelo aumento do SM gastem-no inteiramente em consumo, a elevação total do consumo é minúscula. Como em 1995 o SM está 40% abaixo do de 1990, os 30% devem ter hoje menos de 4,9% da massa salarial, de modo que o aumento de seu consumo seria ainda proporcionalmente menor.
É difícil imaginar como este aumento de gasto possa contribuir para um aumento da inflação. Mas, se for necessário neutralizá-lo, bastaria criar algum imposto ou contribuição que incidisse sobre os 10% mais ricos, que em 1990 dispunham de 48,1% da massa salarial. O ônus para eles seria de 2,1% da massa salarial ou 4,4% de sua renda.
Poderia, por exemplo, ser uma poupança forçada sob a forma de uma contribuição extra à Previdência Social, a ser compensada por correspondente elevação de benefícios. Será que o novo governo brasileiro não poderia convencer o décimo de renda mais alta a fazer este "sacrifício" para melhorar a sorte dos 30% mais pobres?

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