São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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O mundo secreto das cartas do poeta

AUGUSTO MASSI
ESPECIAL PARA A FOLHA

A professora Telê Ancona Lopez é hoje uma das principais conhecedoras da obra de Mário de Andrade. Todos os estudiosos da vida e da arte de Mário devem, e muito, à atividade incessante de Telê e do grupo de pesquisadores do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB).
Neste momento em que há tanta curiosidade e especulações em torno da correspondência passiva de Mário de Andrade —cartas que o escritor lacrou e determinou que só fossem abertas 50 anos após sua morte—, Telê procura sublinhar que esta é apenas mais uma etapa do longo trabalho que vem sendo desenvolvido há quase 30 anos.
Atualmente a grande preocupação da profª Telê é estabelecer normas editoriais para a publicação da correspondência. Para isso houve um intenso diálogo com o Institute des Textes e Manuscrits Modernes do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica) de Paris, responsável entre outras coisas, pela edição das cartas entre Louis Aragon e Elsa Triolet.
O primeiro resultado prático deste intercâmbio será a publicação da correspondência de Mário de Andrade e Murilo Rubião, organizada por Marcos Antonio de Moraes, e publicada em co-edição da Universidade Federal de Minas Gerais com a editora Giordano. Segundo Telê, "este livro foi feito de acordo com esta ótica rigorosa que estamos tentando imprimir na publicação das cartas de Mário. É uma edição modelar".
Nesta entrevista que concedeu à Folha, em sua sala na nova sede do IEB, ela comenta com maiores detalhes a abertura e a organização deste material que estará disponível para pesquisadores e interessados, no final do ano, quando será publicado um catálogo e feito um índice da correspondência.

Folha - Desde quando a correspondência lacrada por Mário de Andrade, que determinou que ela ficasse vedada à consulta e à publicação, vem sendo aberta?
Telê Ancona Lopez - Nós estamos trabalhando desde outubro de 1994. Para estudar e deliberar sobre a quebra do lacre, abertura e organização das cartas, o Instituto de Estudos Brasileiros constituiu uma comissão. Ela é formada pelo engenheiro Carlos Augusto de Andrade Camargo, representante da família de Mário de Andrade; pelo crítico e amigo Antonio Candido de Mello e Souza (a quem Mário confiou a tarefa de separar a parcela da correspondência vedada à consulta); pela prima e crítica de sua obra, Gilda de Mello e Souza; pela diretora do IEB e coordenadora da Coleção de Artes Visuais, Marta Rossetti Batista; pela musicóloga e pesquisadora do IEB Flávia Camargo Toni; e por mim, que respondo pelo projeto e organização do Arquivo.
É importante frisar que tanto o Instituto como a Comissão, além de estarem sendo assessorados por juristas especializados em direitos autorais, também estão empenhados em estabelecer normas editoriais para a publicação deste material, para que possam servir de modelo para futuras edições.
Folha - Quantas cartas compõem esta correspondência?
Telê - Perto de 7.000 cartas. Deste total, uma parcela é composta pelas não-lacradas e que não tinham nenhum tipo de classificação. Parte deste material já vinha sendo utilizado.
Entre eles, podemos citar os postais, que resultaram no livro "Tudo Está Tão Bom, Tão Gostoso - Postais a Mário de Andrade", organizado por Marcos Antonio de Moraes e publicado pela Hucitec e pela Edusp, no ano de 1993. Estes postais estava guardados numa caixinha de charutos e alguns eram usados como marcador de livro. O Mário não conferiu aos postais o mesmo estatuto das cartas.
A parte lacrada contém fundamentalmente a correspondência passiva, ou seja, as cartas recebidas. O grande interesse em torno delas é justificado pois podem complementar o "romance de formação" de toda uma geração. Por último, existe ainda a correspondência de terceiros, sob custódia de Mário de Andrade.
Folha - As cartas lacradas por Mário seguiam algum critério de classificação?
Telê - Mário as colocou em pastas segundo uma classificação que ele desejou rigorosa. As cartas estão organizadas de A a Z; porém, esta ordem alfabética permite que Carlos Drummond de Andrade esteja tanto no "C" como no "D". Em termos funcionais não pode ser inteiramente aproveitada.
O nosso projeto é fazer um registro histórico, estabelecer uma sequência. Posteriormente vamos classificar este material segundo uma metodologia rigorosa: remetente, destinatário, formas de tratamento do destinatário —há uma grande diferença entre alguém que diz Sr. Mário de Andrade e quem diz "Querido Mário"—, data, local, papel, tamanho, tinta, rasuras, sinais (assinatura, desenhos etc). Isso nos vai dar uma visão de conjunto, uma ordem alfabética e cronológica.
Folha - Quem está realizando este trabalho?
Telê - Uma equipe de oito pesquisadores e estagiários do IEB. Todas elas são pessoas experimentadas, que já trabalharam com os manuscritos e as fotos do acervo de Mário.
Folha - Quais são os maiores interlocutores de Mário?
Telê - Nesse momento nós podemos adiantar pouca coisa. Mas, entre os principais interlocutores de Mário estão Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Pedro Nava, Murilo Miranda, que já eram conhecidos por livros de correspondência anteriormente publicados.
Folha - Há cartas de Oswald de Andrade?
Telê - Há, mas isso só vai poder ser consultado em outubro ou novembro deste ano. Nesta data, o IEB espera poder apresentar um catálogo geral da série "Correspondência". O catálogo vai ser publicado pela Hucitec, responsável pela edição da coleção "Mariodeandradiando". Na mesma época haverá uma exposição abordando o caráter epistolar de sua obra.
Folha - O que a senhora particularmente espera destas cartas?
Telê - Muito. Acho que será possível estabelecer o diálogo de Mário com todos os seus destinatários. Isso irá resultar em histórias, quase no sentido de um romance de formação. Vai desvendar muitos aspectos da obra de Mário. E será uma leitura muito prazerosa. A obra de Mário como carteador é de tal forma substanciosa que até mesmo as pessoas que não trabalham com literatura gostam de ler suas cartas.
Folha - E com relação a correspondência de terceiros?
Telê - Há um material interessante, muitas cartas de músicos. Por exemplo, a correspondência entre Francisco Mignone e João de Sousa Lima, que já está sendo objeto de uma edição preparada pela Flávia Toni.
Folha - A senhora acredita que nas edições até agora publicadas por Manuel Bandeira, Drummond, Pedro Nava e outros, possa ter havido algum tipo de omissão ou exclusão de cartas?
Telê - Não. Talvez alguma possa ter se perdido. E isso nós dificilmente poderemos saber, pois o Mário não escrevia com cópia para todo mundo. Ele só tirava cópias das cartas quando elas continham o esboço de um ensaio. Um exemplo disso é a carta escrita para Octávio de Faria, um longo comentário sobre o romance "Mundos Mortos" (publicada no último número da revista do IEB), depois reaproveitado em crítica e artigos.

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