São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995![]() |
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O "complexo de paraíso"
FERNANDO DE BARROS E SILVA
Lacaniano, Octavio se junta a outros psicanalistas, como Contardo Calligaris e Jurandir Freire Costa, que nos últimos anos vêm usando o arsenal teórico de Sigmund Freud para meter a colher em assuntos que até há pouco eram exclusivos de sociólogos, antropólogos e críticos literários. Partindo de uma afirmação do escritor Octavio Paz, segundo quem a América foi antes de mais nada uma utopia européia, o autor procura mostrar como essa visão do paraíso, no caso brasileiro, está ligada ao exotismo, que por sua vez é irmão gêmeo do racismo. Apesar da sensação de tortura que o leitor leigo fatalmente experimenta nas várias passagens em que o autor dá a voz a Lacan —que parece usar palavras demais para dizer coisas de menos—, o livro tem, entre outros méritos, o de dar uma paulada numa certa antropologia que, sob o pretexto de combater o etnocentrismo, andou fazendo a apologia de diferenças e exotismos, na esperança de encontrar aí o segredo da brasilidade. Folha — O que a psicanálise oferece ao estudo da identidade nacional? O objeto não está fora do terreno psicanalítico? Octavio Souza - Freud sempre sonhou que a psicanálise tivesse um destino mais amplo do que o de ser um capítulo na história das terapias das doenças mentais. Neste sentido, não acho que esteja num terreno externo à psicanálise. Agora, os limites dessa abordagem tocam em pontos polêmicos. Os psicanalistas se dividem em duas posições. A primeira afirma que a psicanálise deve se dedicar exclusivamente ao problemas do divã. Outra corrente diz que a psicanálise detém uma ética de uma radicalidade tal que faz com que ela seja a única disciplina capaz de revelar a real significação dos fatos sociais. As demais ciências humanas seriam comprometidas. Discordo das duas posições. A psicanálise tem coisas originais a dizer, mas seu alcance consiste na capacidade de ler a seu modo o resultado das outras disciplinas. A psicanálise entra como instrumento numa orquestra. Folha - Ao introduzir a questão da identidade nacional, você aproveita para fazer uma crítica à onda relativista que hoje parece contaminar as ciências humanas. Sob o pretexto de denunciar o etnocentrismo, as pessoas se apegam às diferenças, criam "estilos de vida" alternativos, como pudessem encontrar uma identidade imune à massificação a que de fato estão submetidas. Octavio - É verdade. A crítica que eu faço se dirige principalmente a uma certa antropologia. Mas para fazê-la eu me apóio num texto de um antropólogo, Otávio Velho. Minha crítica ao relativismo tem como objetivo atacar aqueles que defendem a afirmação de qualquer diferença como se isso representasse a nossa originalidade cultural. A isso me oponho. Folha - Tomando o título do seu livro, pode-se dizer que este instrumento a que você se refere —a psicanálise—, desafia o resto da orquestra, na medida em que diz que toda identidade se estrutura sobre uma fantasia. Octavio - A relação da fantasia com a identidade é complexa. No caso do Brasil, uma imagem fantasiosa de um gozo exótico ao qual o europeu não tem acesso formou uma identidade estagnada. O caráter nacional, as práticas sociais, o jeitinho, a praia, o Carnaval etc têm que se conformar a essa visão exótica de um gozo idílico. Folha - Todo país cria seus exotismos, mas no caso brasileiro eles seriam definidores da identidade nacional. É isso? Octavio - É. Claro que um francês também tem suas imagens exóticas, como o vinho, o queijo. Mas não é a partir disso que ele se identifica. Sua identidade é sobretudo histórica. As nossas imagens identificatórias são, pelo contrário, estéticas. Elas veiculam um prazer ao qual não se teria acesso em outros lugares do mundo. Folha - Quais são as implicações psicanalíticas disso? Octavio - Quando eu digo, acompanhando Octavio Paz, que a América em geral e o Brasil em particular são fruto de uma utopia, isso significa falar em utopia do prazer imediato e sensual. Essa visão do paraíso, no caso da América do Norte, é um paraíso a ser construído no futuro. Nós, pelo contrário, não vamos construir um paraíso como o puritano norte-americano porque já estamos no paraíso. Com o auxílio da noção de fantasia, procuro mostrar que isso nada mais é que a construção de grande "outro" que goza, gozo este a que se tem acesso através da aproximação com este "outro". Folha - Neste ponto você faz a passagem para o racismo. Octavio - Este talvez seja o núcleo do livro. O objeto do gozo do outro visto enquanto ser exótico é o mundo ao qual não temos acesso. No caso do racismo, o outro que goza o faz à nossa custa, o objeto de seu gozo somos nós mesmos. Neste caso é preciso eliminá-lo para ter acesso a este gozo. As duas coisas convivem nas fantasias em torno das quais o Brasil montou sua identidade. A Hannah Arendt mostrou em "Origens do Totalitarismo" que uma coisa pode ser trocada pela outra, dependendo da conjuntura histórica. Por exemplo, o judeu pôde ser um objeto de interesse exótico nos salões do século 19 europeu e se transformou em objeto de ódio racista. Aquilo que era figura estranha, fonte de diversão exótica, se torna uma ameaça que é preciso exterminar. Texto Anterior: O homem que se inventou Próximo Texto: Ensaio analisa a "colonização utópica" do Brasil Índice |
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