São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Ensaio analisa a "colonização utópica" do Brasil

LUÍS CLÁUDIO FIGUEIREDO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Ensaio analisa a colonização utópica do Brasil
Uma hipótese de Octavio Paz (em "Literatura de Fundação", do livro "Signos em Rotação") serve de mote para Octavio Souza, em "Fantasia de Brasil": as Américas foram, antes de terem uma realidade própria, uma utopia européia; em outras palavras, a descoberta do Novo Mundo parecia corresponder à antiga esperança de um mundo diferente e melhor, à esperada realização de um sonho longamente acalentado pelo homem europeu.
Como se sabe, entre nós brasileiros, coube a Sérgio Buarque de Hollanda, num de seus textos seminais —"Visões do Paraíso"—, explorar a realidade brasileira e americana tal como constituída pelo sonho europeu de felicidade ultra-mundana.
Pois bem, a partir desta perspectiva, é possível pôr em questão a tese amplamente difundida de que a colonização nas Américas esteve movida pelo simples intuito de estender a civilização européia na forma de um empreendimento total ou predominantemente homogeneizador.
É claro que as terras e paisagens e, numa certa medida, as populações do "Novo Mundo" —populações humanas, mas também vegetais e animais— estavam sendo incorporadas política, cultural e economicamente às metrópoles européias.
Contudo, esta incorporação não deve ser concebida como simples extensão da Europa: ao contrário, constituída pelos sonhos utópicos europeus, as Américas nasciam sob o "mandato da diferença".
Que consequências esta apreciação do empreendimento colonizador nos traz? Basicamente, a suspeita de que, por detrás das mais eloquentes reivindicações de nossas diferenças específicas, estamos efetivamente confirmando nossa obediência ao mandato: sejam diferentes, encarnem o paraíso e, principalmente, no que concerne às colonizações espanhola e portuguesa, abram-se as portas do território utópico em que o gozo é a lei, em que as riquezas abundam, em que se plantando tudo dá e, mais ainda, em que muito dá e pode ser extraído sem o estafante e demorado trabalho do plantio, em que eventuais problemas poderão ser resolvidos com um certo "jeitinho", em que as mulheres indígenas se entregam fascinadas ao estrangeiro, bem como, mais tarde, as escravas estarão à disposição dos senhores etc.
Vale recordar que esta visão paradisíaca do Brasil como uma terra prometida aos estrangeiros ainda estará presente no cínico discurso com que Assis Chateaubriand recepcionou um embaixador americano, apresentando a fácil disponibilidade das brasileiras para os gringos como uma das melhores coisas que o país tinha a oferecer ao recém-chegado.
Numa terra assim, alguém estará, sem dúvida, gozando e tirando proveito no meu lugar e de mim se eu também não me candidatar rapidamente ao banquete, sempre me acautelando contra as facas e garfos alheios.
Encontramos aqui, diga-se de passagem, um curioso contraponto à tese elaborada por Roberto Schwarz a respeito da nossa vida intelectual: enquanto as "idéias fora de lugar" —falas, crenças e instituições européias e norte-americanas— são importadas para um contexto estranho ao de suas origens, gerando o curioso efeito de uma fiel imitação que produz involuntariamente escandalosas e, para o observador astuto, revoltantes ou cômicas diferenças, as mais intensas e repetitivas reivindicações de diferença parecem apenas confirmar nossa mesmidade, nossa pertinência ao movimento da cultura européia contra a qual procuramos nos distinguir.
Somos diferentes quando tentamos imitar e pertencemos quando procuramos nos separar. É claro que estas duas teses não se excluem, antes propiciam, se bem articuladas, interessantes e inovadoras perspectivas sobre a dinâmica de nossa vida intelectual.
É tentador, por exemplo, retomar desde a articulação destes dois vértices analíticos a fabulosa biografia de Assis Chateaubriand, "Chatô - O Rei do Brasil", de Fernando Morais —maior realização da literatura brasileira no gênero do realismo fantástico.
Mas retornemos a "Fantasia de Brasil". O trabalho de Octavio Souza foi o de se apropriar criativamente da tese de Octavio Paz, desenvolvendo-a em duas direções, mas sempre a partir de um rigoroso pensamento psicanalítico.
Exotismo e racismo são, então, psicanaliticamente demonstrados como modalidades gêmeas de lidar com o estranho, anulando ou atenuando seu caráter terrível e ameaçador, seja incorporando-o gostosamente ao sonho europeu, enquanto algo digno de ser "curtido", melhor dizendo, de ser "comido", seja, quando isso se torna eventualmente impossível —há estranhos às vezes indigestos—, expulsando-o para longe e para baixo da verdadeira humanidade, o que dá ao colonizador, neste momento, o direito ilimitado às formas mais abusadas de exploração e opressão. Em ambos os casos, o estranho é destituído de uma dimensão política positiva.
Igualmente interessante são as análises de Octavio Souza do que ele chama de "respostas exóticas": vindo da literatura romântica até o modernismo e, muito particularmente, até o movimento antropofágico de Oswald de Andrade, Octavio Souza nos conduz pela história das vicissitudes nas tentativas de construção de uma identidade nacional orientadas pela reivindicação de uma diferença radical.
Creio que, aqui, o autor descobriu uma trilha extremamente fecunda para contar a história da cultura brasileira. Na resposta antropofágica estariam, na verdade, os mesmos velhos ingredientes e os mesmos e repetidos movimentos da resposta exótica, mas levados ao paroxismo.
Nesta análise da antropofagia, por sinal extremamente polêmica e contestadora da maioria —senão da totalidade— das compreensões dominantes deste fenômeno, está, penso eu, o resultado mais contundente e profundo de todo o percurso de Octavio Souza.
Percurso a que convido o leitor desta resenha com a certeza de que estou recomendando um livro indispensável a quem —psicanalista ou não, lacaniano ou não-lacaniano, como é o meu caso— se ponha a pensar sobre os modos de subjetivação brasileiros.

LUÍS CLAUDIO FIGUEIREDO é livre-docente de psicologia geral na USP e coordenador da pós-graduação em psicologia clínica na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, autor de "A Invenção do Psicológico" (Escuta/Educ) e "Escutar, Recordar, Dizer" (Escuta/Educ)

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