São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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Ficção define o cientista

PAUL MURDIN
DA "NEW SCIENTIST"

Num livro eloquente, Roslynn Haynes identifica seis representações de cientistas na literatura ficcional do Ocidente, vinculando-as à percepção pública da ciência.
É a imagem ficcional do cientista, mais do que a realidade, que modela a percepção que se tem da ciência, segundo a autora de "From Faust to Strangelove: Representations of the Scientist in Western Literature" ( "De Fausto a Strangelove: Representações do Cientista na Literatura Ocidental", ed. Johns Hopkins).
Com poucas exceções —Marie Curie, Albert Einstein e Stephen Hawking— o estereótipo que salta à mente é a de um homem branco trabalhando sozinho com alguma coisa desagradável ou secreta —um Frankenstein, Jekyll ou Strangelove. É o tipo de pessoa que ninguém quer conhecer.
O primeiro representante é o alquimista, a mais antiga imagem de que se tem do conhecimento, remontada aos textos bíblicos e que a igreja cristã medieval via com desconfiança.
O arquétipo desse representante é o Fausto descrito por Christopher Marlowe (poeta e dramaturgo inglês do século 16), que não busca o conhecimento por si só mas: "Coisas ilícitas/Cuja profundidade seduz essas mentes ativas/A praticar mais do que o poder celestial permite".
Diferentemente do alquimista, que é temido, o segundo tipo descrito por Haynes, o virtuoso estúpido, é ridicularizado. Ele —e é sempre um homem— é o professor aloprado, como aquele representado por Jerry Lewis.
Talvez a melhor imagem do cientista representada na ficção seja a do idealista dedicado, cujas descobertas remetem à perspectiva de um futuro utópico. Esta imagem teve sua origem na iconografia de Isaac Newton.
O trabalho de Newton oferecia a perspectiva de se organizar a vida de um maneira melhor —desde que a previsibilidade da matemática se mostrasse manejável.
Este ideal foi desafiado cientificamente pela mecânica quântica — como expressa Thomas Pynchon em "Gravity's Rainbow"— e pela teoria do caos, discutida na peça "Arcadia", de Tom Stoppard.
No século 18, esse idealismo científico foi desafiado pela sátira, e pela crítica de que os cientistas proporiam um sistema mecanicista auto-suficiente isento de dimensão moral.
Os astrônomos são exemplos da ênfase excessiva dos cientistas a outros mundos, excluindo a condição espiritual deste que habitamos.
Haynes contrasta a imagem parcialmente positiva do idealista com aquela inteiramente negativa do cientista frio e insensível que "vivia de medir coisas/E morria como um decimal recorrente/que ultrapassava os limites da página".
A autora sugere Luigi Galvani como exemplo típico deste arquétipo : ele fazia as pernas de rãs mortas se mexerem aplicando impulsos elétricos.
O cientista frio foi alvo dos escritores românticos ingleses, como William Wordsworth e Percy Shelley.
Walt Whitman também deu as costas aos mapas celestes desenhados pelo "astrônomo erudito", dando preferência ao ar da noite e às estrelas de verdade.
A gravura de Newton feita por William Blake, exposta em cartazes em laboratórios pelo mundo afora, é uma representação ambígua do cientista como jovem grego perfeito que, a julgar pelos desenhos que está fazendo num pergaminho, é evidentemente um gênio imaginativo mas, sobretudo, um sujeito frio no ambiente vazio do espaço.
O estereótipo mais notório é aquele do cientista que perdeu o controle sobre sua descoberta, Frankenstein. Isso se deve principalmente ao filme, estrelado por Boris Karloff em 1931, no qual o cientista é a vítima quase inocente de um engano experimental —o filme situa-se num contexto altamente moralista.
Esta reformulação da história original surgiu numa época em que existia uma confiança acrítica na tecnologia. Na versão secular, não redimida, de Mary Shelley, Frankenstein é um cientista moralmente aleijado que cria um monstro que representa seus próprios desejos inconscientes, tanto bons quanto maus, que foge de seu controle.
Alfred Nobel, inventor da dinamite, e os cientistas atômicos da 2ª Guerra Mundial se tornaram os herdeiros da imagem de Frankenstein, envolvendo-se em fúteis tentativas de compensar, com boas ações, o que fizeram, depois que suas invenções "fugiram do controle". Hoje se atribui à "ciência que escapou de controle" a culpa pelos desastres ambientais.
Para concluir, aqueles de nós que somos cientistas podemos tecer fantasias de que somos heróicos aventureiros, tomando como modelos os oceanógrafos e geólogos retratados por Júlio Verne, o biólogo professor Challenger, criado por Arthur Conan Doyle, e até mesmo o arqueólogo Indiana Jones. Mas mesmo estes cientistas idealizados perseguem suas metas de modo implacável, com descaso total para as sutilezas morais.

O livro pode ser importado através da livraria Cultura (av. Paulista, 2.073, SP, tel 011 285-4033)

Tradução de Clara Allain

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