São Paulo, domingo, 19 de fevereiro de 1995
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O mapa secreto de Cyberia

NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA

O mundo moderno é fruto de uma revolução cultural de imenso impacto, que foi o Renascimento. Estamos porém vivendo agora uma revolução de alcance, proporções e consequências infinitamente maiores. Como toda transformação cultural e tecnológica profunda, o Renascimento trouxe antes mal-estar e desorientação para a maioria, sendo percebido sobretudo como crise, desregramento e dissolução. Também agora se fala ao mesmo tempo de renascimento e de desagregação, com a mesma infiltração de fermentos apocalípticos.
Há uma sensação geral de que as coisas já não são como eram antes, não mais funcionam como costumavam e de que os projetos aos quais dedicamos a melhor parte de nossas vidas já não fazem mais sentido. Mais do que isso, o acervo de conceitos, a carga de conhecimentos a partir dos quais, arduamente, retirávamos ou introduzíamos significado nas coisas do mundo,não parecem mais eficazes para propiciar diagnósticos nem prognósticos. Que se passa, afinal?
Só nos Estados Unidos, a indústria eletrônica declara um crescimento exponencial de negócios, de cerca de US$ 50 bilhões em vendas para US$ 60 bilhões num único ano, anunciando a expectativa de que recordes ainda maiores são esperados para os próximos anos. Na área de multimídia, que está apenas iniciando, o crescimento foi de 40%. Os recursos de TV a cabo interativa já oferecem uma lista de cerca de 20.000 produtos para a escolha e pronta entrega aos consumidores informatizados. Programas de vídeo-games atingem a capacidade inusitada de 24 megabytes de memória, cartuchos chegam estocar 100 megabytes de informação, e a aceleração continua.
A nova tecnologia ATM (modo de transferência assincrônico) permite a transmissão simultânea dados, som e imagem na escala de 45 megabits por segundo, via cabos de fibra ótica. A Internet, a maior rede internacional de conexão via linhas telefônicas, já liga 2.2 milhões de terminais, envolvendo cerca de 25 milhões de usuários em 137 países e cresce numa escala de 10% ao mês.
A indústria eletrônica saúda o ano de 94 como representando aquilo que os economistas chamam de o momento da "decolagem" (take off). Na área científica, a nanotecnologia já trabalha com projetos de reprodução dos 100 trilhões de sinapses do cérebro numa área equivalente a um grão de ervilha, operando em velocidades milhões de vezes mais rápidas que os neurônios humanos.
Outros indicadores, de tinturas dramáticas, são ainda mais expressivos para revelar o que está se passando. O crime que mais cresceu nos Estados Unidos, Europa e Extremo Oriente no ano passado, não foi tráfico de drogas nem atentados sexuais mas, pura e simplesmente, roubos de microprocessadores de memória, popularmente conhecidos como "chips".
A razão é simples, eles são muito pequenos, facilmente transportáveis, não têm identificação de origem, valem mais do que seu peso em ouro e circulam mais rápido do que narcóticos. Como com as drogas, é o desespero da demanda que estimula o crime.
Outro forte indicador de mudanças irreversíveis e que apontam par uma nova composição cultural, provém da linguagem que articula a comunicação nesses ambientes saturados das novas tecnologias. Faça o teste você mesmo e verifique se você domina ou pelo menos arranha o cybemês, o que não será o caso se você imagina que: Man significa homem; ACE é um ás ou um saque sem chance de resposta; Vans é o plural de perua; Sirius é uma estrela; TOPY é uma espécie de chefão; Kali é uma deusa hindu; MAO é um ex-líder do PC (PC?) chinês; Grok é um coquetel-bomba irlandês ou que X Series é um seriado americano sobre espionagem e contra-espionagem. Ou então se você não distingue a diferença entre um hacker, um cracker, um breaker ou um phreaquer (sic).
Não se trata aqui do fenômeno simples de que todo campo de conhecimento especializado cria o seu próprio jargão técnico. Esses temos todos se tornaram metáforas pelas quais se reflete sobre os limites de possibilidade da cultura e as novas plataformas da inteligência. O fato de que eles nos soem familiares mas significam algo inusitado, manifesta justamente a dificuldade de identificar o salto cultural, visto que a realidade emergente ainda está umbilicalmente ligada à anterior.
Essa questão da linguagem portanto não se limita apenas ao plano do vocabulário, ela implica sobretudo numa outra maneira de refletir, colocar questões e procurar alternativas. Para voltar ao exemplo do Renascimento, ninguém imaginaria que duas invenções técnicas tão circunscritas como a pintura a óleo e a perspectiva linear, derivariam em Descartes e nas ambições desmedidas da modernidade e da metafísica.
Um microprocessador é um artefato técnico significativamente mais complexo. O equivalente atual da síntese cartesiana talvez seja Mandelbrot com suas equações fractais matemarizando o caos; talvez seja Bohm e sua física da descontinuidade. Assim como a microeletrônica atingiu seu take-off econômico, é possível que já tenhamos ultrapassado o "horizonte factual" (event horizon), para colocar a questão nos termos da teoria do caos, que induza a imaginação teórica a um novo "atraidor caótico" (chaos attractor), fundando as bases de um pensamento especulativo não-causal, não-linear, impermanente, multifacetado e holístico. Seria a versão histórica do fenômeno físico-matemático da bifurcação, instituindo um estado de turbulência composta da interação multiplicativa de infinitos campos de emissão e agregação microeletrônica-informativa. Uma dimensão extraterritorial e supra-temporal, um mega-circuito bio-integrado, um campo de tensão entre o tecno-anarquismo e o centralismo tecnocrático, que de tão eminente e de tão pressentido, já tem um nome: Cyberia.
Um evento muito peculiar nessa direção, é a feira conhecida como Def Con, de Las Vegas. O título comporta uma perversa ironia. Na verdade, def con é jargão militar e se refere a mais um dos níveis avançados dos estados de alerta, significando "condições de defesa". Mas a reunião, se destina a ser a maior enturmação de todo tipo de hackers, crackers e projetistas de vírus, vindos de todas as partes do globo para trocar informações, segredos, formular novos projetos e incrementar seu já feroz poder de pirataria e sabotagem.
Naturalmente, durante a reunião transcorre o Concurso Internacional de Projetos de Vírus, com farta distribuição de prêmios e honrarias. Os resultados do evento logo estarão contaminando todo o mundo através das artérias eletrônicas de Cyberia.
Esse é o aspecto perverso da nova situação: esses renegados estão na vanguarda das novas tecnologias. Quaisquer aparatos de segurança inventados para proteger os circuitos só funcionam no sentido inverso, geando o desafio de que sua genialidade carece para realizar proezas e conquistar novos trunfos.
Nenhum sistema está imune a eles. As empresas clamam por reformas na legislação e penas mais severas, mas não relutam em assimilar esses monstros inspirados, engenheiros do imprevisto, sempre que conseguem cooptá-los. Eles porém não gostam de celas nem escritórios, preferem viver surfando a velocidades incríveis na fluidez invisível das superinfovias.
O fato da Def Con ter sido programada para coincidir com as grandes feiras internacionais de informática, é muito significativo. Através do seu contraste eles representam os dois lados, o iluminado e o escuro, que compõem indissociavelmente a infosfera em formação.
É como no velho oeste, se você cria a Union Pacific, uma ferrovia atravessando o território livre num fluxo de riqueza de costa a costa, pelo mesmo ato você dá vida a butch Cassidy, Sundance e Billy the Kid. Eles não gostam de cercas, não se submetem a monopólios, não aceitam ordens e descarregam bala em placas de "não ultrapasse". Eles se consideram os autênticos representantes do mundo novo e livre de Cyberia, catalizando todo o potencial das tecnologias inovadoras, expandindo as fronteiras da ciência e da técnica, ultrapassando os limites do conhecido, exigindo que toda informação seja transparente e esteja acessível a todos e a qualquer hora.
A fim de se equipar para essa jornada ao inaudito, buscando níveis superiores de complexidade e percepção, eles procuram alterar seus próprios recursos psíquico-sensoriais. Investem em meios de expansão da consciência e dos sentidos, desde a cadência extática do headstrong beaf e da metabolic music, aos cenários de realidade virtual, até às drogas projetadas, com destaque para as substâncias nootrópicas, não-tóxicas, mas que agem sobre o sistema colinérgico imprimindo lucidez e flexibilidade ao raciocínio, permitindo equacionar vários problemas simultaneamente e em conexão. Passam logo a informação adiante, introduzindo na rede eletrônica e através da arte e da mídia, o chamado "vírus cultural".
Seja como for, ou impulsionados pelo arranque da indústria da informática ou arrastados pelas hordas clandestinas que parasitam e transformam a substância vibratória das infovias, estamos sendo desenraizados do mundo que Descartes fundou e Hegel consagrou. O rumo e o destino são ignorados, mas não os meios de transporte e as técnicas de navegação. Falta um mapa? O mapa está por fazer? Talvez seja o contrário.
Os mapas foram um recurso crucial para a revolução das Grandes Navegações, que originaram o mundo moderno. Eles, em suma, deram visibilidade ao globo, permitindo que ele fosse esquadrinhado, devassado e apropriado. Junto com a pintura perspectivista, eles foram provavelmente as primeiras demonstrações cabais do poder cognitivo da imagem. Mas eles se mantiveram como presenças discretas e menores, num mundo comandado pela palavra escrita.
Os termos agora se inverteram. Um único sistema interativo como o Starsight permite o acesso digital instantâneo a 500 canais de TV de todo o mundo, por menos de cinco dólares ao mês e é compatível com outros recursos multiplicativos. O que esse bombardeio simultâneo de imagens provoca é a dissolução de qualquer enquadramento contextual: as imagens vibram em você mas não suscitam reflexão, elas simplesmente se incorporam. O mapa agora é você. Benvindo a Cyberia.

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