São Paulo, segunda-feira, 20 de fevereiro de 1995 |
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Humor ibérico ;Fala lusitana
JOSÉ GERALDO COUTO
O mínimo que se pode dizer de "O Amor É Fodido", o primeiro romance do escritor português Miguel Esteves Cardoso, é que é um livro à altura de seu título: divertido, inventivo, corajoso e surpreendente. Lançado em dezembro em Portugal, o livro já vendeu lá 40 mil exemplares e está no primeiro lugar nas listas de best sellers. Espécie de "Fragmentos do Discurso Amoroso" à portuguesa, não é, a rigor, um romance (ou só o é no sentido de que no romance moderno cabe de tudo, até bula de remédio —vide "O Jogo da Amarelinha", de Cortázar). Embora tenha personagens, uma historinha, um narrador etc., é mais uma colagem de pequenas crônicas, dissertações e anedotas em torno de seu tema: a tragicomédia da paixão amorosa. Escrito em sua maior parte em primeira pessoa, como se o narrador falasse diretamente à sua desinfeliz amada, conta a inverossímil história de um casal de amantes (João e Teresa) que, depois de tanto infernizarem um ao outro, optam pelo suicídio a dois. Só que, na hora "h", um engana o outro e ambos sobrevivem. Enquanto ele pensa que ela está morta, ela se casa com o melhor amigo dele e tem dois filhos. O restante das reviravoltas é melhor manter em segredo. Basta dizer que o imbróglio todo, com sua mistura de humor, tragédia e melodrama, faz lembrar, alternadamente, três autores: Nelson Rodrigues, Pedro Almodóvar e Dalton Trevisan. Em algumas (poucas) passagens o livro quase cai na redundância, em outras se aproxima perigosamente da pura grosseria. Nos melhores momentos, contudo, a mistura do "baixo calão" com uma elaboração sofisticada dá um resultado original e delicioso. Humor ibérico Esteves Cardoso não é um mero engraçadinho: é um grande escritor que se serve do humor para se expressar. Poucos autores da língua, de qualquer dos lados do Atlântico, exibem hoje um domínio tão completo de seu ofício: precisão vocabular, ritmo, inspiração, originalidade de construção, "ouvido" para a fala coloquial. "O Amor É Fodido" expõe um tipo de humor e um modo de encarar os paroxismos da paixão que só é possível encontrar num artista de cultura ibérica. No inventário que faz das absurdas situações amorosas e das suas representações simbólicas, não há apenas ironia, mas também uma certa dose de adesão, de cumplicidade. Em outras palavras: Esteves Cardoso não critica "de fora"; cospe (amorosamente, é claro) no prato que comeu, fala do que conhece, goza a si mesmo. Para um artista como ele, é possível rir dos versos melodramáticos de uma Florbela Espanca e ao mesmo tempo amá-los sinceramente. Para entender esse amor/humor ibérico talvez seja o caso de lembrar daquele poema de Fernando Pessoa que começa dizendo que são ridículas todas as cartas de amor e conclui que, na verdade, ridículo é quem nunca escreveu uma carta de amor. Ou ainda daqueles versos de Carlos Drummond de Andrade: "Amor cachorro bandido trem/ Mas também sem ele que graça que a vida tinha?" Fala lusitana É possível que os sisudos críticos acadêmicos —aqueles que escrevem calhamaços ilegíveis ou não escrevem nada— repudiem a irregularidade, a deliberada sem-cerimônia, a espontaneidade impudica de Esteves Cardoso, escritor visivelmente mais interessado na vida que na literatura ("Ai, como eu adoro a puta desta vida", diz seu protagonista-narrador). O leitor, entretanto, dificilmente encontrará texto mais rico e prazeroso em outros livros recentes. Com a graça adicional —para nós, brasileiros— da curiosa fala lusitana, na qual as mulheres é que vestem cuecas, e o copulador não goza, mas "se vem". E na qual, para quem não sabe, "fodido" quer dizer "fodido" mesmo. Livro: O Amor É Fodido Autor: Miguel Esteves Cardoso Nº de páginas: 187 Preço: R$ 26,43 Onde: nas principais livrarias Texto Anterior: McLaglen brilha em 'O Delator' Próximo Texto: Escritor fez crítica de rock Índice |
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