São Paulo, terça-feira, 21 de fevereiro de 1995
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Manoel de Oliveira dá vida longa ao cinema

LEON CAKOFF
ESPECIAL PARA A FOLHA, DE BERLIM

O cineasta português Manoel de Oliveira é, aos 86 anos, o mais velho diretor ainda em atividade. Com uma obra iniciada nos anos 20, mas descontínua até os anos 70, Oliveira funcionou como uma espécie de referência criativa para a geração de cineastas portugueses surgida ao longo dos anos 80 (João Botelho, Pedro Costa, João Cesar Monteiro, entre outros).
Espécie de gênio solitário que filma graças à teimosia, Oliveira vem realizando ao menos um filme por ano contando com a fidelidade do produtor Paulo Branco.
Seu cinema mistura uma espécie de teatralidade típica dos filmes primitivos (plano frontal, câmera fixa) com um gosto pelos diálogos literários. Seus filmes são, quase sempre, adaptações de obras literárias (Camilo Castelo Branco, Agustina Bessa Luiz) ou teatrais (Paul Claudel, Prista Monteiro).
Com apenas um filme seu exibido comercialmente no Brasil ("Non, ou a Vã Glória de Mandar"), Oliveira é, infelizmente, pouco conhecido do público brasileiro, mas conta com uma legião de fiéis admiradores nos festivais internacionais.
Após concluir as filmagens de "O Convento" (com Catherine Deneuve e John Malkovich), Oliveira concedeu esta entrevista exclusiva à Folha, em Berlim, onde esteve para apresentar seu último filme, "A Caixa"
*
Folha - Que tal ser o cineasta há mais tempo em atividade no ano do centenário do cinema?
Manoel de Oliveira - Bem, é uma alegria, em primeiro lugar, mas na realidade sinto-me como um debutante. O cinema é para mim cada vez mais complexo, algo que escapa cada vez mais a qualquer conceito.
Godard disse uma coisa que cada vez mais compreendo. Ele disse que o cinema não era uma arte. Que o cinema não era a vida... Qualquer coisa que se situava entre as duas. Acho que esta expressão é estranha. Todavia dá uma idéia de quase indefinição possível do que seja o cinema.
Folha - O senhor já abriu muitas portas no cinema?
Oliveira - Eu acho que todo realizador que é honesto —quer dizer autêntico—, sincero, que tem o cinema como objeto de arte, como uma expressão da sua maneira de pensar, sua maneira de ser, seu sentimento, sua alma, da sua visão do mundo, é sempre, mesmo que não faça falta a ninguém, um estímulo muito grande para aqueles jovens que o vêem.
Foi exatamente isso que aconteceu comigo. Quando eu era jovem, meu pai me levava a ver o cinema. E eu me apaixonei por ele. Eu não frequentei uma escola, não fiz nenhum curso particular. O cinema foi se entranhando na minha pele, como uma gripe e não encontrei mais antibiótico.
Folha - Muitos artistas, pintores, escritores, quando lemos suas biografias, fica forte um sentimento de solidão, de desespero, incompreensão. Digamos que o senhor atinja um ponto de saturação extrema e queira se isolar do mundo... Que coleção de vídeos o senhor levaria para assistir, manter vivas as emoções do passado...?
Oliveira - Se eu estivesse isolado do mundo, não levaria vídeo. Porque nem o vídeo, que é muitíssimo mais pobre que o cinema, nem a televisão, nem o cinema fazem o mundo ou alteram o mundo. A vida é que faz o mundo, é que faz o cinema, é que faz o vídeo, é que faz a televisão, que é tudo. Portanto, se eu fosse posto fora da vida, não me interessava por mais nada porque eu era um inútil.
Folha - Já que o senhor descarta a possibilidade de isolamento a gente nem pode pensar nos livros que o senhor levaria para reler...?
Oliveira - Mas uma coisa é isolar, quer dizer, afastar-se do mundo. Outra coisa é, digamos, um tempo de pausa ou descanso, de isolamento necessário, de concentração, reflexão, são duas coisas diferentes. Ora, um tempo de reflexão e de descanso é aconselhável. É como um jejum, par descansar o organismo, assentar-se as idéias, fisicamente recompor-se, acertas agulhas nos seus raciocínios, das suas idéias, tudo isso é conveniente e necessário.
E, portanto, são as circunstâncias que determinariam os livros que haveria de levar, não é? Porque esta é uma coisa interessante, é que os livros que se levassem... Parece que naturalmente não se levariam livros já conhecidos. E os livros que se não conhecem ainda não se podem ter sobre eles qualquer juízo porque não sabe o que se leva, não é? É uma caixa de surpresas.
Agora, ainda sobre este isolamento, é uma pergunta ao mesmo tempo curiosa e extremamente ampla porque o isolamento da vida, do mundo, é uma caldeira, uma caldeira em chamas, uma espécie de inferno. Quanto mais entra na parte mundana, mais próximo se está do crime, do pecado, do erro, da angústia, do sofrimento, da luta, da batalha etc.
Folha - O que o senhor aprendeu em tantos anos de cinema?
Oliveira - Que tenho de recomeçar tudo de novo...
Folha - O que o senhor acha que ensinou?
Oliveira - Nada... É nada, não ensinei nada. Eu não vejo na arte uma finalidade, não é? Arte é uma necessidade da memória dos homens. É por isso que chamo de teatro e muitas pessoas confundem. Quando eu falo teatro pensam que é o teatro do palco, teatro à italiana ou outro qualquer.
Quando eu falo de teatro, quer dizer: isto é teatro por oposição à vida. A vida é uma coisa que decorre naturalmente, mas há acontecimentos que impressionam as pessoas e que elas desejam repetir. E, então, fazem o teatro, quer dizer, fazem a imitação dessas coisas ou põem em cena, representam. E isso é possível, é possível há milhares de anos, porque o teatro existe há muito tempo. Se representa neste mundo mesmo antes de haver palcos (risos). É isso que permite fazer teatro.
Porque a vida não existe, não sabes? O que existe é o cafezinho que a gente toma com açúcar... e mais nada, não é? E já foi, já não é, evaporou-se. De maneira é que, o que fica são as convenções! A gente tira o chapéu, agora já não usam chapéu, não podem tirar, não é? ...
O tirar o chapéu, o cumprimento das mãos ou baixar a cabeça, é uma convenção que tem um gesto num lugar e tem num outro lugar outro gesto com o mesmo significado. Portanto, estes gestos, estas convenções é que nos dão a possibilidade de transpor. O que a gente transpõe não é vida. São as convenções da vida é que nos permitem transmitir. Porque essas convenções já fazem o teatro na vida. Às vezes mal representado, outras vezes mais sincero.
Como alguém dizia, os animais sabem tudo por instinto, são impelidos por instinto e os homens não sabem nada e tudo que sabem aprenderam. De maneira que é neste ponto que se fazem as convenções. Isto vem a propósito de que a arte, quanto a mim, não é o meio útil, quer dizer, não tem utilidade em si. Como dizia o Zé Régio, "é uma flor que tem o fruto em si mesmo". Quer dizer, ela nasce ou morre, desaparece ou fica, mas não dá a criação.
O homem sim, o homem sim faz arte, tem essa necessidade de criar, para o seu gozo. A arte em si não tem uma finalidade mística. O realizador ou o pintor pode imprimir a sua visão mística, no quadro que pinta, no livro que escreve ou no filme que faz. Mas não é em si, quer dizer, é um ato mundano, é um desejo, é um impulso, é uma necessidade como um grito por desespero, uma ânsia de afirmação. No fundo um ato ligado a mais nada, um ato inútil, um ato fútil... Mas belo, muito belo.
Folha - Um traço, uma característica dos seus filmes, é o desejo, o sentido do desejo, que é uma coisa intensa, profunda...
Oliveira - Para mim, o desejo é uma coisa profundíssima. Graças ao desejo que a gente persiste na vida, não é? E continua a satisfação de tomar um café, a satisfação nas relações amorosas, nos afetos e nas realizações, não é? É um impulso, mas tudo tem medida.

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Sobre Manoel de Oliveira à pág. 5-4

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