São Paulo, quarta-feira, 22 de fevereiro de 1995
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Nhenhenhém do Nenhengatu

SAULO RAMOS

Disse o presidente da República estar cansado do "nhenhenhém" (falar, falar, falar), que os mais pedantes diriam "tautologia" (dizer, ou repetir cansativamente, a mesma coisa por outras palavras), expressão parecida com truísmo, que o povão chama de óbvio ululante. Embora todos reconheçam que Fernando Henrique seja um nenhengatu (boa língua), o desabafo usado, em tupi (não confundir com o verbo entupir), pelo chefe da nação na verdade vos digo é cansaço mesmo e talvez dele próprio seja o "nhenhenhém" em sentido estrito, isto é, rezinga, resmungo entre dentes e de mau humor, segundo os dicionários.
Pois que se prepare. Muito em breve passará do resmungo à fúria, deixará de resmonear e, aos gritos, dirá que o país é ingovernável com esta Constituição, porque suas emendas constitucionais, todas precedidas de longos "nhenhenhéms", dificilmente serão aprovadas pelo Congresso, pois o processo escolhido, aquele do art. 60 da Cidadã, vai emperrar seu bem-intencionado projeto, angelicamente chamado de reforma.
Há muito tempo que se sabe de uma verdade ensolarada no direito constitucional: a reforma da Constituição, através de emendas, somente é possível e viável quando se trata de alterações tópicas, isto é, de um ou dois artigos nesta ou naquela matéria, especificamente tida como obsoleta, cuja alteração é fruto do consenso geral. Isto porque a emenda, tal como foi disciplinada, exige aprovação por três quintos, em duas votações na Câmara dos Deputados e, quando aprovadas, mais duas votações, também por três quintos, no Senado Federal. Enfim, são quatro turnos de votação. Se apenas em um deles não foi atingido o quórum de três quintos, boa noite, a emenda vai para o arquivo, não tem outra chance, era uma vez.
Não há barganha política, mesmo altamente moralizada (é possível?), que proporcione quórum tão alto e por duas vezes aplicáveis em cada uma das Casas do Congresso. Basta um pequeno partido, ou dois ou três deputados, com capacidade de aliciamento nas várias bancadas, para mandar aos quintos os outros três quintos necessários. Se os meios de comunicação derem cobertura aos "contras", aí, ai-ai do nhenhenhém.
Para uma reforma ampla, que envolva vários capítulos da Carta Política, necessária e indiscutivelmente urgente, o caminho viável seria o da revisão, que, tecnicamente, abrange vários capítulos e muitas matérias ao mesmo tempo, e possibilita as alterações de profundidade, sistematizando-as entre si através da coerência entre os novos e os textos mantidos, entre preceitos e princípios, o que, para complicar, chamamos de estrutura sistêmica do direito constitucional.
Além disso, a revisão, por excepcional, admite um processo transitório, que poderia ser decretado através de uma única emenda (esta, sim, votada pelo processo dos três quintos, dois turnos, em cada Casa) que restabelecesse as regras desejadas pelo próprio constituinte de 1988, quando editou o art. 3º das Disposições Transitórias, isto é, aprovação através de número menor de votos, maioria absoluta (metade mais um) e não três quintos, em sessão unicameral (Senado e Câmara em reunião conjunta) observados os dois turnos no lugar de quatro.
Imprescindível seria a fixação de prazo, data para começar e data para acabar, com a promulgação celebrada em um único ato, posto que aquela maroteira do famoso salame (promulgação aos pedaços) inviabilizou a revisão ordenada pela própria Constituição de 1988, cuja desobediência materializou crime de responsabilidade cometido coletivamente pelo Congresso passado.
O nhenhenhém de que o Supremo Tribunal Federal não concordaria com uma revisão nesses termos não passa de truísmo cochichado. O STF, acima de tudo, tem juízo. Não se oporia nem mesmo se a revisão fosse atribuída a uma Constituinte exclusiva, não congressual, sonho hoje impossível, mas solução ideal, como se faz na Suíça. Dizer que o Augusto mandou recado, deu a entender que... é ofendê-lo. O STF é tribunal e não órgão de consulta.
Sarney, na Presidência da República, não conseguiu evitar que a Constituição de 1988 acabasse como acabou, toda cheia de aleijumes, nela enfiados pelas lideranças de então, entre as quais figuravam Mário Covas e Fernando Henrique, hoje doidinhos para reformar o que eles próprios fizeram, antes da queda do Muro de Berlim e do espetacular esfarinhamento da União Soviética.
Agora, por mais empenhado que ainda esteja na reforma constitucional, Sarney é apenas o presidente do Senado. No máximo poderá lutar pela aprovação daquilo que passar pela Câmara dos Deputados, onde Luís Eduardo Magalhães vai comer o pão que o diabo amassou e, pela segunda vez, irá amargar a derrota que o PFL sofreu na Constituinte passada.
Gostaria, e muito, de estar errado nesta pessimista previsão, porque as reformas anunciadas pelo presidente Fernando Henrique são excelentes, sobretudo na ordem econômica, cujos textos divulgados conferem exatamente com as redações propostas pelos liberais em 1988 e recusadas pelo PMDB de então, quando o hoje ministro Nelson Jobim era relator adjunto, ofuscado pela luminosa cultura do relator principal. Fernando Henrique, nos seus estudos de axiologia, axiosofia e axiopistia (ele entende, não precisa de dicionário), aprendeu que Deus não tem nhenhenhém: Deus castiga quando é preciso. Pena que o Brasil tenha sido castigado junto, mas o país ainda tem tempo e muito nhenhenhém pela frente.

JOSÉ SAULO PEREIRA RAMOS, 62, é advogado em São Paulo. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney).

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