São Paulo, quinta-feira, 23 de fevereiro de 1995
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As enchentes e os poderes públicos

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LUIZA ERUNDINA
As enchentes que castigaram a cidade nas últimas semanas foram semelhantes àquelas ocorridas em março de 1991, mas suas consequências parecem ter sido mais graves, tanto em prejuízos materiais quanto em perdas de vidas. Não é hora de buscar culpados. É preciso, sim, desenvolver crítica responsável à aparente impotência dos poderes públicos na defesa da população atingida.
Sabemos que as inundações na região metropolitana têm causas estruturais. A vertiginosa urbanização acarretou a impermeabilização da bacia hidrográfica, com o consequente aumento do escoamento das águas; a ocupação das planícies naturais de inundação e o assoreamento dos córregos e rios, resultante dos movimentos de terra em loteamentos e construções.
A isso se soma a atual forma de aproveitamento dos recursos hídricos da bacia, com operações complexas de barragens. Neste quadro, as intervenções tradicionalmente praticadas —canalização e limpeza de córregos— por si só não alcançam, em ritmo e eficácia, o crescente número de pontos de inundação, embora possam, aqui e ali, atenuar os efeitos das enchentes.
É notório que a região metropolitana carece de uma diretriz estratégica para o sistema de drenagem das águas e prevenção das inundações, com um horizonte de, pelo menos, 20 anos. Tal diretriz terá que emergir de organizações da sociedade civil e se sobrepor aos interesses setoriais que têm condicionado o aproveitamento das águas.
Em nossa gestão, junto com a SBPC e o Consórcio Intermunicipal do Grande ABC, realizamos um concurso nacional de idéias sobre o melhor aproveitamento das águas do Alto Tietê. Os resultados, publicados em livro, constituem importante subsídio para se compreender a questão.
Em que pese a falta de uma orientação geral, de longo prazo, que servisse de referência obrigatória para os sucessivos governos, isto não constitui desculpa para a omissão, a falta de coordenação e a ineficácia da administração pública estadual e municipal no enfrentamento do problema das enchentes, a cada ano. É possível, mesmo com recursos financeiros escassos, desenvolver, de modo permanente e, não só durante as chuvas, um conjunto de ações em áreas vulneráveis, de modo a prevenir consequências desastrosas.
Num primeiro nível, trata-se de aplicar os dispositivos legais de controle e fiscalização de áreas críticas; de incentivo à vegetação e permeabilização do solo; de disciplinamento dos movimentos de terra.
Num segundo nível, são os serviços e obras de obstrução e limpeza do sistema de drenagem e a contenção de áreas de risco geotécnico.
A cidade de São Paulo dispõe de um acervo tecnológico valioso. Nos anos 89 e 90 foi organizado o cadastro automatizado dos pontos críticos de enchente. Além disso, foi feito um levantamento pioneiro no país. Dezenas de especialistas realizaram estudo detalhado em 200 favelas, cartografando as áreas de risco e apresentando soluções técnicas para cada uma delas.
Graças a esses trabalhos, muitas obras simples evitaram tragédias. A combinação de inteligência técnica com a adequada priorização dos investimentos públicos pode resolver a situação de áreas crônicas de enchentes, como foi o caso da Ponte das Bandeiras e do projeto de construção do reservatório de amortecimento de cheias no Pacaembu, criados na nossa administração.
Lamentamos a dificuldade de ação conjunta entre prefeituras e governo do Estado, sobretudo nas situações de emergência. Em maio de 1991, junto com 16 prefeitos da região metropolitana, vereadores e deputados, promovemos uma longa e exaustiva reunião com o então governador Fleury, da qual resultou um protocolo de 14 itens.
Constitui-se, na ocasião, um grupo de trabalho que elaborou um plano de contingência para o enfrentamento de situações de inundação, compreendendo um sistema de alerta, a partir de dados de radar, esquemas de socorro, alternativas de tráfego, disponibilização de abrigos, assistência e cuidados de saúde.
A partir daí, o governo municipal fez todo o possível para cumprir sua parte no plano, mas o comportamento dos órgãos do Estado foi decepcionante. Revendo, agora, aqueles compromissos acordados, verifica-se que a maioria deles continua a requerer a ação dos dois níveis de governo. Esperamos que o governador Mário Covas os retome agora.
Por fim, gostaria de destacar que nenhum plano ou ação efetiva de combate às enchentes será eficaz se não houver informação verdadeira aos meios de comunicação e efetiva abertura à participação dos cidadãos.

LUIZA ERUNDINA DE SOUSA, 60, foi prefeita da cidade de São Paulo (1989-92) e ministra-chefe da Secretaria de Administração Federal (governo Itamar Franco). Foi candidata ao Senado Federal pelo PT nas eleições de 1994.

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