São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 1995
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Brasil acusa CIA de buscar autopromoção

DA SUCURSAL DE BRASÍLIA E DA REPORTAGEM LOCAL

O governo brasileiro está convencido de que foi vítima de um lance de marketing da CIA (Agência Central de Inteligência), órgão do governo dos EUA.
O Palácio do Planalto decidiu rechaçar a denúncia de que funcionários públicos brasileiros, envolvidos numa licitação bilionária, teriam recebido oferta de propinas.
Em sua primeira entrevista como chefe da SAE (Secretaria de Assuntos Estratégicos), Ronaldo Sardenberg, disse à Folha que as suspeitas levantadas contra o Brasil inserem-se numa estratégia da CIA de tentar valorizar-se num cenário pós-Guerra Fria.
"É notório o lobby da CIA nos Estados Unidos para redefinir o seu papel", disse Sardenberg, que deixou o posto de embaixador do Brasil junto à ONU para assumir a secretaria.
O caso envolve um dos maiores negócios do mundo na área de segurança nos últimos anos: a compra de um sistema de radares para a região Amazônica.
Os militares brasileiros deram ao projeto, conduzido pela SAE e pela pasta da Aeronáutica, o nome de Sivam (Sistema de Vigilância da Amazônia).

A licitação
Dois consórcios de empresas disputaram a concorrência, de R$ 1,18 bilhão. O primeiro consórcio era liderado pela francesa Thomson. O outro, pela americana Raytheon, afinal vencedora.
A suspeita de falta de lisura no negócio é um dos ingredientes de um escândalo que estourou nesta semana em Paris. Sob a acusação de que realizavam espionagem em seu território, o governo da França abriu processo de expulsão de 5 americanos, 4 deles diplomatas.
Entre os temas que interessavam aos supostos "espiões" americanos estaria, conforme as suspeitas levantadas pelo governo francês, o projeto Sivam.
A Thomson estava convicta de que venceria a licitação. A empresa francesa já havia fornecido os equipamentos que compõem o Cindacta, sistema de radares que cobre as demais regiões do Brasil.
O jornal "The New York Times", citando fontes da CIA, informou que o governo brasileiro teria optado pela proposta da Raytheon depois que os americanos denunciaram nos bastidores suposta tentativa da Thomson de subornar servidores públicos brasileiros.
Os rumores levaram a SAE a investigar o caso. Analisaram-se todos os estágios da concorrência. Ronaldo Sardenberg teve uma longa conversa com seu antecessor na secretaria, o almirante Mario Cesar Flores.
"Minha disposição era a de abrir um inquérito", disse Sardenberg. Mas, segundo afirma, não há elementos que justifiquem isso.
Seu raciocínio é o de que há uma denúncia de propina, mas não se afirma quem a ofereceu nem quem a recebeu.
Cesar Flores endossa as palavras de Sardenberg. Em conversa com um amigo, o almirante afirmou: "Como não tem mais comunistas para cassar, a CIA cria novos fantasmas".
À Folha, Cesar Flores disse que todas as fases da concorrência do processos da Sivam foram "transparentes". Ele afirma que a proposta vitoriosa, da Raytheon, está rubricada por um representante da Thomson e vice-versa.
O contrato entre a Raytheon e o governo brasileiro ainda não foi assinado. Embora o Senado já tenha aprovado a contratação de empréstimo para financiar o Sivam, o contrato ainda está na fase de elaboração.
A expectativa é de que seja assinado até 15 de março, segundo informou à Folha ontem o coronel reformado da Aeronáutica Carlos Gonzaga, que representa os interesses da Raytheon no projeto.
Desde que venceu a concorrência, em julho de 94, a empresa americana abriu duas subsidiárias no Brasil.
A empresa não opera apenas com radares. Inclui entre os seus feitos, por exemplo, a invenção do forno microondas.
Uma das subsidiárias, Raytheon Sistemas de Integração Ltda, instalada no Rio, foi constituída unicamente para tocar o projeto Sivam e é dirigida pelo coronel Gonzaga. Antes de aposentar-se, ele cuidava justamente do sistema de radares do país.
A Folha apurou que, preocupada com a possibilidade de atraso na assinatura do contrato, a direção da Raytheon nos Estados Unidos pressiona o governo americano para que desminta as informações atribuídas à CIA.
A pressão é exercida sobre Ron Brown, secretário de Comércio dos Estados Unidos. Ele esteve no Brasil no ano passado. Era portador de carta em que o presidente Bill Clinton pedia ao governo brasileiro que desse preferência à tecnologia americana para o Sivam.
O documento foi entregue ao ministro da Fazenda de então, Rubens Ricupero. Brown esteve também com o então presidente Itamar Franco.
A França também enviou um emissário ao Brasil: Gerard Longuet, secretário da Indústria e Comércio da França. A exemplo de Brown, sua missão era defender os interesses da Thomson.
O grande receio da Raytheon é que o Congresso brasileiro acabe postergando a assinatura do contrato. Pelo menos dois parlamentares já manifestaram o desejo de abrir investigações para eliminar as suspeitas levantadas em relação ao Sivam.
Investigação

O deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP), entregou à direção da Comissão de Fiscalização Financeira e Controle da Câmara pedido para convocação das autoridades envolvidas no programa.
O senador Gilberto Miranda (PMDB-AM) também anunciou ontem, a intenção de investigar a operação. Miranda foi o relator, na Comissão de Assuntos Econômicos do Senado, do processo encaminhado pelo governo Itamar, para aprovação do empréstimo de R$ 1,18 bilhão junto ao Eximbank.
O empréstimo foi fundamental para que o governo desse preferência à Raython. Hoje, Gilberto Miranda preside a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado. E, nas novas funções, considera fundamental que se abra uma investigação para apurar as denúncias de suposta oferta de suborno.
O senador disse que vai pedir ao Itamaraty que envie correspondências à França e aos Estados Unidos, pedindo que esclareçam as denúncias. Até o momento, o governo brasileiro não tomou qualquer iniciativa na área diplomática.
O processo do Sivam é gigantesco. Reúne cerca de 600 kg de papéis confidenciais. Além da Raytheon, o governo brasileiro contratou a empresa Esca (Empresa de Automação de Sistemas S/A), de capital nacional.
Caberá à Esca gerenciar a implantação do Sivam e absorver a tecnologia americana para, em seguida, repassá-la ao governo brasileiro.
A Folha ouviu ontem o engenheiro José Antônio Podesta, diretor de Sistemas da Esca. Ele revela a suspeita de que, durante a concorrência do Sivam, o Brasil tenha sido palco de uma guerra de espionagem internacional. Estava em jogo, segundo afirmou, um dos maiores contratos do mundo em termos de fornecimento de equipamentos.
O projeto inclui: 17 radares fixos, oito radares móveis, 800 plataformas de coleta de dados, oito aviões Brasília com sensores, quatro aviões-laboratório, 200 sistemas de radiolocalizadores, três centros de vigilância (Belém, Manaus e Porto Velho) e um centro de coordenação geral em Brasília.
Segundo Antônio Podesta, os franceses entraram na concorrência seguros de que a venceriam. Apegavam-se ao fato de que já haviam fornecido todos os equipamentos do atual sistema de controle do espaço aéreo brasileiro.
Quando se vislumbrou a possibilidade de vitória dos americanos, os franceses "começaram a jogar cartuchos". Antônio Podesta afirma que americanos e franceses travaram "um jogo pesado, uma guerra de dinossauros". Ainda segundo ele, "foi um jogo de profissionais de primeira linha e, para alcançar os seus objetivos, usaram todos os esforços, até um limite que a gente não sabe qual foi".
A Esca foi contratada sem concorrência pública. Alegou-se que a empresa é a única capaz de conduzir a implantação do Sivam. Possuiria "notória especialização". Receberá pelo trabalho cerca de R$ 127,4 milhões, mais R$ 93,4 milhões para despesas extras, tais como seguro e transporte de equipamentos para a região Amazônica.

LEIA MAIS
Sobre o caso Sivam à pág. 2-10

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