São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 1995
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Emílio e sua caranguejola

JOSUÉ MACHADO

Emílio é um jornalista quase perfeito. Ótimo repórter, ótimo redator, ótimo editor, ótimo diagramador. Só não é perfeito, dizem alguns, por ser doentiamente discreto. Não se empomba nem se empluma, não tenta tirar vantagem de sua profissão, jamais se autopromove e não diz mais do que o necessário. Mesmo assim, "sotto voce", sussurrantemente. Deram-lhe na juventude o apelido de Emílio por semelhança com o personagem de Rousseau, "Emílio" ou "Da Educação", naturalmente bom, puro, ingênuo. Sabe inglês, francês, espanhol, italiano e um pouco de alemão. Não fuma, não bebe, não... Não faz nada de errado. Pôs-se a aprender alemão, já maduro, e perguntaram-lhe: "Para que, bom Emílio?" Ele sorriu e respondeu por trás dos óculos, sem jactância: "Para ler no original Goethe, Schiller, Engels, Marx, Freud, Benjamin, Thomas Mann, Elias Caneti, Heinrich Boll, Peter Handke."
Com tantas línguas dançando-lhe no cérebro, num dia destes teve uma dúvida sobre português, ao esculpir uma legenda na editoria em que trabalha: "As sementes são secas ou são secadas?" A dúvida não durou mais de 37 segundos. É assim com todas as dúvidas que tem —e se orgulha de tê-las, porque continua pensando, ele diz. Imediatamente evocou na mente as 12 gramáticas que leu e gravou para sempre e desarquivou a lembrança sobre verbos com particípio duplo, os abundantes.
Tais verbos têm um particípio regular, terminado em "ado" ou "ido", e um irregular, mais curto, de terminação variável. Por exemplo: secar, secado, seco; acender, acendido, aceso. E assim por diante. Além disso, os particípios variam em gênero e número com os verbos ser e estar e permanecem invariáveis com ter e haver. Em geral usa-se o particípio regular com os verbos ter e haver, isto é, na voz ativa; e o particípio irregular, com ser e estar, isto é, na voz passiva.
De tudo isso lembrou-se nos 37 segundos do primeiro tempo.
Portanto, as sementes são secas, as sementes foram secas, estavam secas; as sementes haviam secado, tinham secado.
Há várias exceções a essa regra, como as dos verbos ganhar, gastar e pagar —ganhado, gastado e pagado foram para o espaço, substituídas por ganho, gasto e pago. "Emílio tem ganho muito, o carro dele está gasto, mas também está pago. Defendido atropelou defeso, que só se usa no sentido de proibir: "Fumar em restaurantes agora é defeso." (Só um alcaide fanfarrão diria uma coisa dessas.) Eleito também se usa com os verbos ter e haver. "O PT não tem eleito (ou elegido) presidentes nos últimos tempos." Enchido também se usa com ser. "A taça da amargura foi enchida." Escrevido e fazido foram para o beleléu, substituídos por escrito e feito; não se usa mais abrido e sim aberto com qualquer verbo auxiliar. E cozido, de cozer, sufocou coito, o particípio irregular, que serve para designar coisas mais agradáveis.
Tudo isso e muitas outras exceções Emílio passou em revista antes de perpetuar a legenda sementeira e ir para casa em sua caranguejola. Caranguejola é o apelido que deram a outro defeito do Emílio (sim, ele tem mais um): o Fusca 1966 com que se lesmeia de casa para a Globo e vice-versa, vencendo em cada viagem 25 quilômetros. Não se sabe até hoje se o "carro" é do Emílio ou se o Emílio é do "carro". O pai o comprou zero quilômetro, usou-o alguns anos e o passou ao filho, que o mantém, com amor, levando-o a oficinas retificadoras de motor de cinco em cinco anos. Retificadoras, não retíficas, como as chamam os mecânicos e malregistra o Aurélio, lembra Emílio a respeito dessas oficinas que ressuscitam motores semi-mortos, como o 1.200 do "carro" dele. Pela mesma razão, não se deve dizer "revendas", à moda de mecânicos e de jornalistas especializados, e sim "revendedoras", lembra Emílio, cioso da língua, que trata com tanto carinho quanto o "carro".
Por que caranguejola? Caranguejola é um grande crustáceo parecido com caranguejo (sem i, se me faz favoire) e também gíria para carro desconjuntado. O fato é que a caranguejola emilial geme e estrebucha até o limite máximo de 53 km/h, enquanto ele medita sobre seu livro em preparo, "O Tutor da Democracia". Nele, analisa a benéfica influência de ACM no governo, de 64 até os felizes dias atuais. Enquanto embarca na "jóia", alguém lhe diz que vai demorar para chegar.
"Não tenho pressa", ele responde, antes de sair disparando na caranguejola. Poc, poc, poc, poc, poc.

JOSUÉ R.S. MACHADO é jornalista, formado em línguas neolatinas pela PUC-SP. Colaborou em diversos jornais e revistas.

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