São Paulo, sábado, 25 de fevereiro de 1995
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

'Mistério' mostra idas e vindas de Zé Celso

NELSON DE SÁ
DA REPORTAGEM LOCAL

No final da noite de estréia de "Mistério Gozozo", Zé Celso surgiu de um vão do teatro Oficina e garantiu ao público, com o rosto exausto e triste, "muita coisa ainda vai acontecer neste mistério". A exemplo de Gerald Thomas com "Don Juan", também o diretor, ator, cantor e compositor de "Mistério" prometia mais, com o tempo.
Na última semana, um mês depois da estréia, ainda faltava acontecer "muita coisa". A gigantesca confusão do primeiro dia, confusão que denunciou amadorismo e pressa, desapareceu em grande parte, o que é um alívio, em se tratando de espetáculo musical.
Não é à toa que os musicais da Broadway ou do West End, para dar exemplos extremos, iniciam as apresentações meses antes da estréia oficial, fora da cidade. Até alcançar ritmo, até não desafinar mais, o que aconteceu e muito na estréia de "Mistério", um musical precisa de tempo, muito mais do que um espetáculo regular.
"Mistério Gozozo" ganhou em ritmo com o tempo em cartaz, mas ainda falta acontecer "muita coisa" exatamente naquilo que é a marca, a essência do teatro de Zé Celso. A energia avassaladora, e avassaladora é bem a palavra, do Oficina deveria ter sido trocada por outra, mais cadenciada, "cool".
Era o projeto do diretor, depois de um ano de problemas médicos, iniciados no dia da primeira apresentação deste mesmo "Mistério", para 4.000 pessoas, no Carnaval do ano passado. Um infarto e complicações fizeram com que Zé Celso buscasse uma nova cadência, uma nova música, em Chet Baker, na Bossa Nova, para a sua sonhada Ópera de Carnaval.
Mas a mudança não se completou. A energia avassaladora que levou uma multidão para a apresentação de "Mistério" no centro de São Paulo não foi substituída ainda, ou foi apenas em parte.
Com certeza o foi na música original, com a maioridade de José Miguel Wisnik como compositor. De início a meio caminho entre o tropicalismo e a esgotada vanguarda paulistana, ele demorou a ganhar fisionomia própria.
Pois ela chega em "Mistério", o seu terceiro espetáculo ao lado de Zé Celso. Ela chega com os versos de Oswald de Andrade, por exemplo, com os versos que acompanham o Jesus das Comidas que "abre os braços sobre a cidade noturna de São Sebastião do Rio de Janeiro":
"O mar é um caramujo sujo
Cor de chumbo plúmbeo"
A música de José Miguel Wisnik envolve os versos delicadamente, sustentando a visão do mar, a partir do alto do Rio de Janeiro de meio século atrás. Entre muitas outras, uma declaração de amor ao Rio imperfeito, por dois paulistanos, o músico e o poeta.
Um poeta que então já buscava fazer as pazes com a fé, com o próprio Deus, através do Jesus das Comidas que ele via no Cristo Redentor, através de um mistério duplamente gozoso. Nas palavras de Mário da Silva Britto, com quem Oswald de Andrade deixou uma das muitas versões da peça:
— O poeta, por exemplo, reelabora os nomes das doenças torpes em termos de contundente poesia, tornando-os encantatórios quando utilizados à maneira de responsos religiosos, de místicos cantares de dor e mágoa, de orações sacrílegas que, no entanto, escondem no seu âmago nostálgica candura do homem de fé que Oswald foi em outros tempos — o homem de fé que reconhecia como necessária a existência, no ser humano, de uma dimensão órfica.
A ambiguidade, a contradição própria de Oswald de Andrade nesta reunião entre o sagrado e o blasfemo fica mais evidente com o texto que ele publicou no "Diário Carioca", pouco antes das versões finais de "Mistério Gozozo". O poeta ataca o cristianismo como uma arma do patriarcado, mas logo se emenda, lembrando que, "numa curiosa e fulgurante inserção, as origens do Cristo são matriarcais e totêmicas. A Anunciação."
É esta "fulgurante inserção" que domina a peça, em que as "doenças torpes" do Mangue tornam-se "responsos religiosos" e "místicos cantares".
Em tempo, "Mistério Gozozo" ou "O Santeiro do Mangue - Mistério Gozozo à Moda de Ópera", o título original do poema dramático, é sobre o Mangue, a antiga zona do meretrício do Rio, frequentada pelos marinheiros, pelos "navá".
É onde Seu Olavo dos Santos (que é feito por um iluminado Paschoal da Conceição, ator de empatia incomum, dono de um olhar e de um sorriso que dominam suavemente) vende as suas imagens de santos, uma delas em troca de Eduléia, a prostituta (que é feita por Alleyona Cavalli, atriz que atua sempre no limiar da tragédia, ao mesmo tempo violenta e indefesa).
A ação dos dois é guiada do alto pelo Jesus das Comidas (que é feito por um calmo, plácido Marcelo Drummond, atuando em ritmo cadenciado, como quer o diretor) e o próprio Zé Celso surge com um personagem que não existe no original, ou que não está definido como tal.
Zé Celso é Serafim, como o próprio Oswald de Andrade se chamava, desde "Serafim Ponte Grande", o romance autobiográfico. Serafim é o anjo que celebra a ação, interpretando as rubricas poéticas, anunciando mudanças de cena, tomando parte em tudo. Com um terno branco, folgado, o Serafim é quem retrata melhor o caminho "cool" que o diretor está buscando. É leve, carinhoso com o público, muito diverso do personagem avassalador de antes.
Mas a metamorfose, se pode ser notada em aspectos diversos do espetáculo, está longe de completar-se neste "Mistério Gozozo", talvez porque a montagem tenha se iniciado e desenvolvido anos antes de definir-se o caminho agora buscado por Zé Celso.
Assim é que muitas das músicas do espetáculo, compostas pelo próprio diretor, carregam ainda a marca de uma energia avassaladora, quando ela não existe mais; e enquanto outras músicas já abraçam as minúcias, as delicadezas do poema.
Assim é que os figurinos do início do espetáculo ainda se mostram improvisados, amontoados, de uma estética orgulhosamente "suja"; enquanto aqueles do final, como os parangolés de plástico em cores únicas, como os uniformes dos marinheiros, estão plenamente desenvolvidos e apresentam uma mensagem definida, sem precisar recorrer aos berros.
Mas talvez não seja mesmo possível completar-se neste "Mistério Gozozo" a mudança sonhada por Zé Celso. O poema original, escrito entre 1930 e 1950, já é todo ele carregado de idas e vindas, todo ele incompleto, ainda representativo de um Oswald de Andrade preso ao que chamou de "fase subterrânea", a exemplo do que acontece com Zé Celso, agora. Ainda é um poema que se quer avassalador, sem forças para tanto.

Peça: Mistério Gozozo
Direção: Zé Celso Martinez Corrêa
Elenco: Zé Celso, Paschoal da Conceição, Alleyona Cavalli e outros
Onde: Teatro Oficina (r. Jaceguai, 520, tel.: 604-0678)
Quando: de quinta a sábado às 21h e domingo às 20h
Preço: R$ 8 (neste fim-de-semana)

Texto Anterior: O destino é um fato inexorável
Próximo Texto: Banda de mulheres troca música por cenas de lesbianismo no palco
Índice


Clique aqui para deixar comentários e sugestões para o ombudsman.


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.