São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Weber via a música como emblema da modernidade

GABRIEL COHN

Max Weber jamais ocultou seu gosto pela música. A julgar pelo relato de um antigo discípulo seu, Paul Honnigsheim, houve até momentos em que os numerosos colegas e amigos que frequentavam sua casa nas tardes domingueiras reservadas para isso gostariam, no íntimo, que ele refreasse um pouco seu entusiasmo pelo tema.
Nessas ocasiões ele se sentava ao piano e punha-se a demonstrar longamente como a música que se desenvolveu no ambiente histórico europeu é diferente que qualquer outra, e como isso se ajusta a certas tendências centrais da modernidade européia.
Mero hobby de fim de semana, terão talvez pensado alguns. Mas se tratava de muito mais do que isso. Tanto assim que ele não se limitou às demonstrações ocasionais, mas acabou dando forma escrita (no texto reproduzido neste volume) aos resultados de seus estudos sobre as relações entre as formas assumidas pela música ocidental e aquele processo que designava por racionalização, no qual via o traço específico da modernidade.
Na realidade o gosto de Weber pela música penetra muito mais fundo na sua obra do que esse texto, visto isoladamente, dá a entender. As suas grandes análises histórico-sociológicas são literalmente concebidas como composições, em que os temas e os conceitos correspondentes vão-se desenvolvendo e ganhando conteúdo ao longo da obra. E as relações que ele busca estabelecer entre as diferentes linhas de ação significativa que se diferenciam no mundo moderno dificilmente encontrariam uma analogia melhor do que na descrição que faz do contraponto ao falar da construção musical polifônica:
"Várias vozes, tratadas entre si com os mesmos direitos, transcorrem uma ao lado da outra e são ligadas harmonicamente umas às outras, de tal modo que cada progressão de uma tem em consideração as outras e, por isso, está submetida a regras determinadas".
Como se vê, o texto que aqui se publica não é mera peça de circunstância, uma espécie de curiosidade na vasta produção weberiana. Trata-se do resultado de estudos sérios e prolongados, que incidem sobre o ponto mais central das preocupações que animam a sua obra.
(...) Numa ma passagem do texto deste volume, sobre a racionalização da música, dedicada à análise do papel desempenhado pelo desenvolvimento dos instrumentos musicais nesse processo, Weber escreve: "Pois, de fato, apenas através do concurso da explicitação (Verdeutlichung) instrumental dos intervalos se explica o fato de que a maioria dominante dos intervalos (...) torne-se sempre racional". O termo decisivo, aqui, é "explicitação". Refere-se ela à nitidez que os significados de uma linha de ação assumem em condições históricas e sociais específicas que cabe à pesquisa descobrir. Nessas condições, os significados tornam-se claros e distintos.
Essencial, aqui, é não perder de vista que é neste exato ponto que um processo que poderia parecer meramente da ordem da diferenciação estrutural se apresenta no seu traço mais intrínseco, que é o de ser significativo, de fazer sentido para os agentes.
Por detrás de todo o tema da diferenciação das linhas de ação está aquilo que mais importa para Weber: ir além do dado estrutural da mera diferenciação para chegar à exata contrapartida disso no campo dos significados, que é a explicitação, a nitidez. E, ainda mais do que a sociologia da religião, é a sociologia da música que lhe oferece elementos para alcançar a explicitação.
Uma razão para isso consiste em que a música (européia, sobretudo) envolve processos significativos que não se esgotam no encadeamento "horizontal" linear dos seus elementos, mas envolvem, intrinsecamente, uma dimensão "vertical", da articulação dos intervalos sonoros. Nesse sentido é o ponto limite da racionalização bem-sucedida, até porque chega tão próximo quanto possível de uma linha de ação em que fosse possível racionalizar simultaneamente e de modo inequívoco as relações significativas internas a ela e as que lhe são externas (o truque, claro, está em que, na música, os significados que se articulam no eixo "vertical" também fazem parte dela). A música oferece, portanto, algo como uma expressão prototípica desse processo decisivo.
O argumento, assim, é o de que no cerne do processo de diferenciação que imprime sua marca ao mundo moderno está um dado que, para além do mero aumento de complexidade estrutural, tem caráter significativo. Esse dado corresponde exatamente àquilo que, na passagem citada, é designado como "explicitação", numa tradução adequada, mas que não capta a riqueza de ressonâncias de sentido que o termo alemão Verdeutlichung oferece (uma delas, central para nós, permitiria traduzi-lo por "inteligibilidade").
E aqui chegamos ao meu argumento principal. Sustento que é nesse ponto que encontramos a raiz do processo de racionalização, naquilo que o vincula intrinsecamente à diferenciação. A racionalização é o processo que confere significado à diferenciação de linhas de ação. É ela que abre o caminho para o exercício da ação racional e enseja a sua crescente e, logo, irreversível expansão.
Nessa perspectiva o tema weberiano do "desencantamento do mundo" pode ser lido como o de um aumento gradativo de nitidez de significados antes mesclados e indistintos. É como se o "desencantamento do mundo" fosse uma espécie de depuração dos significados atribuídos pelos agentes às suas ações, que seriam despojados de suas múltiplas conotações de toda ordem, tendendo, no limite, para denotações unívocas. Essas puras denotações (para usar o mesmo termo, obviamente não weberiano) constituem os típicos significados aptos a se oferecerem à ação racional.

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