São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Aforismos ardentes

BERNARDO AJZENBERG
SECRETÁRIO DE REDAÇÃO

Nélida Pinõn já publicou 11 livros de ficção, alguns traduzidos em diversas línguas; em três décadas de carreira, recebeu vários prêmios; é membro da Academia Brasileira de Letras; possui razoável presença na "mídia"...
Se tudo isso não significa, por si só, que sua obra seja de ótima qualidade, torna no mínimo incompreensível o fato de que livro seu em livraria seja, como se diz, agulha no palheiro: quase impossível de se encontrar. Se se considerar, então, que seu trabalho é —como de fato é— de ótima qualidade, a falha do mercado vira quase crime.
Sete anos depois de "A Doce Canção de Caetana" (1987), seu último livro, Nélida lança agora "O Pão de Cada Dia". Como não se trata de ficção, permanece a lacuna mencionada acima. Mas, mesmo assim, é uma oportunidade para se "ouvir" de novo, ainda que parcialmente, a sua bela voz.
A autora não pretendeu fazer filosofia. O que este livro reúne, em 117 páginas, são 144 "fragmentos": registros, anotações, aforismos, pequenos relatos, sensações, apontamentos, devaneios, anseios, litanias. Como se percebe à sua leitura —embora não sejam datados—, trata-se de escritos vários, acumulados anos a fio.
O estilo ardente de Nélida está presente. Estilo da "frase nervosa, substancial, de músculo saliente...", como apregoava Flaubert. Pululam construções sintáticas de tonalidades bíblicas, às vezes hiperbólicas até, na busca de uma perfeição estética que a autora no entanto sabe impossível de se alcançar, busca inerente à sua criação, desde a estréia, em 1961, com "Guia Mapa de Gabriel Arcanjo".
Também os temas tratados aqui se aproximam dos que atormentam a Nélida ficcionista: paixão, mitos, procura pelos ancestrais, entrelinhas das histórias bíblicas, decadência, feminilidade, geografia, paisagens selvagens, a fúria da linguagem, a criação artística, o erotismo religioso (ou a religiosidade erótica).
Ao lado deles, a autora rende homenagens líricas a vários "colegas", de Goethe a Vargas Llosa, passando por Manuel Puig e Julio Cortázar, de Raquel de Queiroz a Lygia Fagundes Telles, passando por Clarice Lispector...
"O Pão de Cada Dia" revela uma saudável agitação intelectual. Mente irrequieta, como irrequieta é a sua linguagem —muitas vezes tachada preconceituosamente de "difícil" e "elitista"—, Nélida Pinõn produz efeitos intrigantes. Veja este fragmento, intitulado "Vingança": "O desejo é uma traição. Deixa, à vista de todos, os sentimentos mais íntimos. O olhar é um punhal que cega quem testemunha o retrato da paixão". Ou ainda, "Homo faber": "Eles arrotavam nas mesas e defecavam nas feiras públicas. Em compensação, construíam catedrais. E nós?".
Ao escrever sobre a "paisagem erótica", no quadro de sua típica religiosidade sexuada, ela afirma: "...enquanto a moral fere frequentemente o estético, a estética do erotismo não golpeia a moral". Mais adiante, referindo-se à eterna polêmica que envolve o "Dom Casmurro", de Machado de Assis, escreve, no fragmento "Capitu"; "Capitu é um travesti vestido de Bentinho que o gênio de Machado imortalizou em uma parede do tamanho do Brasil". E por aí afora.
Por falar em Machado... É bem verdade que, vez ou outra, nos defrontamos com certo riozinho meio raso demais para o seu denso universo, como por exemplo ao ler Nélida afirmando que "todas as quintas-feiras, quando eu chego à Academia, cumprimento a estátua de Machado de Assis. Me comove pensar que ele está lá fora, quietinho, e o quanto aprendi com ele. Sempre."
Mas quem poderia negar a escritora de tão amplo calibre o direito a um resvalo fugaz na pieguice?
Para quem não conhece Nélida Pinõn, é bom correr, antes que ela suma de novo —mais uma vez sem justificativa— das livrarias, pois quem a conhece certamente já adquiriu o seu exemplar.

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