São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Pelos porões das tribos urbanas

MARILENE FELINTO
DA EQUIPE DE ARTICULISTAS

Helena Wendel Abramo transformou em objeto de estudo da sociologia a aparente displicência inútil de certa fatia da juventude dos anos 80, os chamados grupos espetaculares: os punks e os darks, seus cabelos espetados, sua vestimenta diferenciada (o couro, o metal, o tênis de marca), os porões esfumaçados, os subterrâneos urbanos onde eles "se colocam à parte", se exibem, dançam sua música específica e se esfregam uns nos outros.
Socióloga formada pela Universidade de São Paulo, Abramo teve seu livro "Cenas Juvenis - Punks e Darks no Espetáculo Público Urbano" premiado como a melhor tese de mestrado no "9º Concurso de Obras Científicas e Teses Universitárias em Ciências Sociais", realizado pela Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) em 1993.
Preocupada em mudar o foco da análise e da discussão sociológica das manifestações juvenis no Brasil —fixadas no "modelo ideal" do comportamento juvenil nos movimentos da década de 60—, Abramo não pretende definir o caráter "alienante" ou "revolucionário" desses fenômenos, nem privilegia (como sempre se fez) o exame de sua eficácia enquanto elemento de contestação e da mudança que porventura introduzam na ordem social.
"Considerei necessário ressaltar as dimensões sociais e históricas das condições e das expressões juvenis, a fim de tornar perceptíveis as peculiaridades das manifestações atuais, não como confirmação ou desvio de um conteúdo essencial e universal da juventude, mas como respostas vinculadas ao contexto social em que se realizam", diz ela no prefácio.
É desse modo que a socióloga vai recortando a trajetória dessa geração "nascida em 62" (conforme música do grupo de rock Ira! citada no livro), geração que canta e se pergunta: "Eu não vi Kennedy morrer/ não conheci Martin Luther King/ não tenho muito para dizer?".
Segundo a tese de Helena Abramo, esses jovens têm, sim, muito a dizer, dando sua resposta à "nova ordem" de modernização conservadora através de uma atuação contestatória provocada por um sentimento de insatisfação: são "jovens descontentes com o estado geral das coisas, num leque amplo e difuso que vai das alternativas de lazer às perspectivas profissionais, às normas sociais, à situação do país, e com um anseio por agitação. Estes jovens encontraram no ideário punk uma maneira de atuar, algo em torno do qual estruturar uma diversão genuína, intensa, que fornecesse ao mesmo tempo uma identidade singular e uma forma de expressar a insatisfação".
"Esses grupos reúnem-se no tempo de lazer para procurar atividades de diversão; desenvolvem um estilo próprio de vestimenta, carregado de simbolismos, e elegem elementos privilegiados de consumo, que se tornam também simbólicos, e em torno dos quais marcam uma identidade distintiva", escreve Abramo.
Questionando desde a própria definição de juventude —marcada antes pela negatividade ou pela indeterminação do que por um conteúdo preciso— no que se refere a estes grupos, Abramo procura definir cada um deles conforme suas características específicas e localizar a influência dos mesmos sobre a cultura urbana, no contexto histórico em que coexistem.
Assim é que darks (jovens que se articularam em torno do "rock paulista") e punks (garotos, na sua grande maioria, de famílias de trabalhadores de baixa renda, moradores dos subúrbios e periferias, influenciados pelo som e pelas idéias dos grupos punks da Inglaterra) são grupos que encontraram, na produção dos estilos espetaculares, a elaboração crítica de questões relativas à sua condição e a seu tempo, além da maneira de intervir no espaço público e nos acontecimentos.
"O estilo das tribos juvenis contemporâneas —as roupas, a música, as atitudes assumidas nas atividades de diversão— é usado para realizar uma exposição pública do grupo", observa Abramo, apontando para a interessante abordagem da "sociedade do espetáculo", dominada pelas aparências, conforme a define o sociólogo americano Christopher Lasch: "o torvelinho de imagens e ecos que paralisam a experiência (...) e minam o senso de realidade, tornando o senso de identidade dependente do consumo de imagens do eu e questionando a realidade do mundo exterior".
Texto oportuno não só por vir preencher uma lacuna no universo de obras sobre o tema da juventude no Brasil, o livro de Helena Abramo é sobretudo um estudo importante pela concepção e a metodologia inovadoras, capazes de dar à incompreendida juventude contemporânea (não universitária, não rebelde à la anos 60) um lugar ao sol da sociologia.

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