São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Mestres e escravos

CONTARDO CALLIGARIS; ELIANE CALLIGARIS
ENVIADOS ESPECIAIS A COLUMBUS

Chris e Sara fabricam principalmente açoites em Worthington, Ohio. A marca é: "Cat Toys" —brinquedos de gato, "testados pelo(a) escravo(a), aprovados pelo(a) mestre(a)". No meio da entrevista, Athena, representante da convenção NLA (Associação Nacional do Couro), se junta a nós.

Folha — "Cat Toys" é sua atividade principal?
Sara - — Não, trabalho em publicidade, sou escritora. Começamos fabricando coisas para nós mesmos. Se tornou uma espécie de hobby. Chris e eu temos o sonho de conseguir viver só disso. Ganhar a vida assim seria uma maneira de realizar uma presença a tempo pleno na fantasia sexual.
Folha — Justamente, à diferença da Europa, aqui as práticas B&D ou S&M parecem ser um estilo de vida completo.
Sara - — Há pessoas para quem isso só acontece no quarto. A extensão da orientação sexual em um estilo de vida é o caso de quem frequenta as convenções.
Folha — Ontem, em seu seminário, você falou da importância da validação nestas convenções: que cada um possa validar suas escolhas sexuais, confirmando que não é o único.
Sara - — A necessidade de validação aqui nos EUA é muito grande. O computador é para muitos a maneira mais simples de encontrar uma validação social, trocar perguntas e experiências pelo Internet, sem ter que revelar sua identidade e mostrar sua cara (1).
Chris e eu nos encontramos por um serviço online. Eu li uma história dele, e tocou em cada nervo que eu queria que fosse tocado. Lhe escrevi uma carta. Imediatamente nos contatamos pelo telefone. Ele acabava de romper um casamento ruim, estava pela primeira vez explorando todas suas fantasias, encontrando muitas pessoas. Eu na época não me sentia de me entregar para alguém que tivesse outras relações. Lhe disse que esperaria que estivesse pronto a ficar com uma pessoa só. Ele levou alguns meses para tomar a decisão e veio para cá.
Você notou que a maioria das mulheres envolvidas em S&M são grandes, gordas, 100 q. ou mais?
Folha — É verdade. Isso vale para submissas e dominadoras?
Sara - — Ambos os lados. Não sei porquê. Para estas mulheres, das quais faço parte, não te como se vestir porque não há roupa disponível. Não há espartilho para uma mulher de 125 quilos.
Folha — Há uma diferença entre a cena gay S&M e a heterossexual. Na cena gay S&M, os homens cuidam muito da aparência de seus corpos. Isso não é o caso da cena S&M hetero.
Sara - — Também não é caso na comunidade lésbica S&M, onde há todos os tamanhos e formas. Mas notei que também na Europa, quando fui para Amsterdam, por exemplo, toda a roupa é para pessoas pequenas.
Athena - — Os homens que estão no B&D, encontram a beleza no bondage mesmo.
Sara - — Quando entrei em S&M, achei que era uma submissa sem modelo. Havia de fato dois modelos, "A História de O" e "Nove semanas e Meia de amor". "O" cometia suicídio no fim (na versão que eu tinha pelo menos), e em "Nove Semanas" no fim ela enlouquece. Não havia ninguém para quem pudesse olhar e dizer: estas pessoas se deram bem.
Folha — As coisas mudaram?
Sara - — Há agora romances (2) onde todo o mundo encontra sua parte de prazer. Mas ainda há um problema: todas as mulheres são maravilhosas e todas as submissas têm menos de 17 anos.
Athena - — Não só, uma boa parte do S&M descrito é impossível, irresponsável, e irrealizável. Como, por exemplo, suspender por algemas de metal; não se pode fazer isto. Os melhores livros não são de ficção, são manuais, como fazer um bom nó, também como fazer uma boa cena, como tranquilizar o escravo, etc.
Folha — É uma tradição da cultura americana, que é repleta de livros de sabedoria prática.
Sara - — No começo eles só existiam no mundo gay S&M. Isto mudou e se tornou mais fácil para as pessoas se envolverem nisso, porque há mais literatura, não só pornô açucarado. Também a coisa é melhor aceita. No DSM 4 (Manual Diagnóstico e Estatístico), parece que o S&M não aparece mais propriamente como doença.
Folha — Sem demasiadas ilusões: o DSM fala de parafilias, e as parafilias são patológicas.
Sara - — Por causa disto Chris teve tantas dificuldades em se tornar adulto. Bem no início de nossa relação, ele me escreveu uma carta muito bonita, descrevendo sua gênesi. Ele chegou a pensar que era um estuprador. Não teve sexo até bastante tarde em sua vida porque tinha medo de seus próprios desejos. Como criança, era bombardeado por imagens de bondage, no cinema, na televisão. Ele se lembra da primeira cena de bondage que viu em um seriado de televisão: uma mulher no chão, com os pulsos amarrados, uma mordaça na boca, e os olhos vendados. Quando viu esta mulher, não sabia o que ele faria uma vez que a tivesse assim, mas —mais de qualquer outra coisa— ele queria isto. Desde então, passou sua vida se sentindo como uma espécie demonstro e só quando encontrou outras pessoas do S&M conseguiu entender e descobrir que ele não era um monstro, era um mestre. Mas já havia casado com uma mulher que devia supostamente curá-lo destas suas idéias e foi um desastre.
Athena - — Por isso é difícil viver no isolamento. Nos EUA o sexo é culpado de qualquer forma. Pior se suas preferências sexuais são desviantes. Encontrando uma comunidade couro, as pessoas conseguem se libertar desta pressão e se sentir normais enfim.
Folha — A comunidade couro existe? A NLA (ver pág. 6-4) é uma comunidade? Como convivem os S&M gay e hetero?
Sara - — Não é fácil responder. A NLA é um grupo pansexual. Mas também há pessoas que não querem estar com outros que não sejam da mesma orientação. Eu, aliás, tinha um problema com a NLA inicialmente, porque para mim o couro não significa muita coisa, não visto couro. E na NLA há pessoas que só gostam de couro, podem nunca ter um açoite nas mãos. O couro lhes basta.
Athena - — A comunidade S&M é grata à comunidade S&M gay. Eles foram os pioneiros, combatendo pelos direitos humanos.
Folha — Nas conversas surge às vezes a pergunta: você domina ou se faz dominar? Estas posições são para sempre, fixas?
Sara - Há pessoas que fazem os dois. Athena gosta de submeter e de ser submissa. Chris não será nunca um submisso. Acho que sempre serei uma submissa. Conhecemos casais em que às vezes um domina, às vezes o outro.
Athena - — Mudo por vulnerabilidade. Gosto da energia mobilizada no jogo público, mas não posso ser bottom em público, em público só posso dominar. Não quero mostrar esta parte íntima de meu amor. Se sinto a energia dos outros quando os açoito? Oh, sim! Não são homens ou mulheres, são indivíduos para mim. Não é sexual: sinto-os em minhas mãos.
Sara - — Conhecemos muitos homens gays que não fariam o amor com uma mulher, mas aceitariam ser açoitados por uma mulher, ou açoitariam uma mulher, porque haveria troca de energia. Muitas cenas S&M não acabam em sexo, porque não é a coisa mais importante. Chris disse uma vez que se tivesse de escolher entre renunciar ao sexo ou renunciar ao S&M, ele renunciaria ao sexo em um segundo. Para ele, o que importa não é a ejaculação física, mas a descarga emocional, uma ejaculação emocional.
Uma das coisas que me toca nele, é que ele pode fazer alguma coisa, em uma parte sensível de meu corpo, e quando constata minha reação ele soluça, como em uma espécie de pequeno orgasmo vendo como isso me afeta. Se grito "ouh!", ele também grita. A coisa o toca tão profundamente quanto a mim. Reparem que ele não tem prazer diretamente sexual com isso; seu equipamento sexual não está sendo usado, só usa o equipamento de cima, a cabeça. Talvez, aliás, uma das razões pelas quais o S&M está se tornando tão popular e aceito é porque pode acontecer tão facilmente sem sexo.
Folha — Soubemos que numa próxima convenção na Flórida, haverá S&M e swingers, juntos.
Sara - — Há bastante pessoas no swinging que usam e gostam de alguns elementos do S&M, do bondage, mas não é sua escolha principal. Mas por que não se encontrar, expressar nossa maneira de ser mesmo com outras comunidades? A expressão de nossa sexualidade é um pouco mais complicada do que para os outros. Por exemplo, eu visto um colar; esta é uma expressão de minha sexualidade, de minha submissão a Chris. Poder vesti-lo em público, é bonito. Alguém no trabalho, me perguntou: o que é? uma coleira de cachorro? Respondi, não, é de escrava. Mas não é fácil. Aqui em um grupo podemos ser nós mesmos. O mesmo aconteceu com os gays, que criaram seus bares e clubes, onde podiam ir, se sentir bem, se acariciar, se beijar.
Folha — Voltando à intimidade, para Athena - é sua submissão, e para você?
Sara - — Para mim, a coisa mais íntima do amor é se beijar, muito mais íntima do que o sexo genital. Chris brinca com outras submissas e a única regra que eu exijo é que não pode beijá-las. Os beijos são só para mim.
Athena - — Outros têm como regra de não ter sexo em público ou mesmo de não fazer sexo.
Sara - — Foi um processo lento. No começo foi uma coisa exclusiva, como eu pedia. Aos poucos fomos a festas, a um bar em Columbus, e neste bar ele brincou com outros parceiros na minha frente e foi ok. Assim, começamos a fazer algo mais. Athena - foi a primeira pessoa dominadora a brincar conosco.Ele estava disposto a me deixar jogar com outros dominadores. Me sentia um pouco culpada, pensava que, se eu tinha esta liberdade, ele devia ter a mesma. Também há algo muito especial no fato de poder mostrar o amor e a devoção que você tem para alguém, na frente de outras pessoas e se submetendo a outras pessoas. Quando Athena - me açoito em público, foi uma expressão de minha devoção a Chris. Porque era um prazer, para ele, me ver, ver minhas reações, quando uma outra pessoa me açoitava.
Athena - — Com Sara -, a coisa mais íntima e profunda foi quando ela estava sendo açoitada e eu segurava suas mãos em minhas mãos, e a pegava pelos cabelos e podia sentir o que ela sentia.
Sara - — Foi um momento muito especial para nós.
Athena - — E não precisou de contato genital. Não houve sexo. Havia momentos em que eu a tratava gentilmente, outros em que puxava a cabeça dela para trás com força.
Folha — Isso era em um bar em Columbus?
Sara - — É um bar dominantemente S& gay. Eles têm um equipamento completo (cruz, anéis para amarrar etc.). Nos sentimos benvindos neste bar. Perguntamos a primeira vez se podíamos brincar lá. Durante bastante tempo, aliás, éramos os únicos que jogavam lá. Os gays vinham, eram vestidos magnificamente, pousavam maravilhosamente, mas não acontecia nada. Temos esta brincadeira que, para certas pessoas, S&M significa "stand and model" (fica de pé e pousa). Tenho um problema, aliás, com a palavra "play" —brincar, jogar—, é um jogo? Não, não é um jogo.
Athena - Há a questão do feminismo e do S&M. Há mulheres que acreditam que o fato de sermos submissas a homens seria uma traição à causa. As feministas não conseguem ultrapassar a questão do abuso, porque o que fazemos se parece com abuso. O que elas esquecem é o consentimento, que elimina o abuso.
Folha — As feministas, por consensual que seja a coisa, dificilmente aceitam a idéia que vocês possam achar seu prazer em uma posição de submissão.
Sara - — A nova legislação proposta pelas feministas contra a pornografia diz que pornografia é qualquer coisa que apresenta uma mulher em uma posição submissa. Sou violentamente contra isso.
Em uma das discussões atuais no Internet, alguns pretendem que uma mulher submissa abandone seu espírito a seu dominador. Não concordo. A razão pela qual minha submissão tem tanto valor para Chris, é porque, como você pode ter notado nesta conversa, eu sou um pessoa bastante forte; em minha vida de trabalho sou uma pessoa dominadora. Por isso, minha submissão tem para ele mais valor. A maioria das mulheres submissas são assim.
Folha — E não há pessoas fracas jogando S&M?
Sara - — Certo. Algumas pessoas têm um sinal luminoso: por favor abusem de mim. Sou um tapete, me pise. Mulheres que não são muito fortes podem cair em armadilhas com homens que procuram o abuso. Uma das razões de ser da comunidade é informar sobre estas pessoas de tal forma que não possam abusar dos outros.
Athena - — A pessoa que diz: "não é necessário uma safeword, eu nunca cometo erros" deve ser evitada.
Athena - Sempre se fala da vulnerabilidade do submisso. Mas há também a vulnerabilidade do dominador, dos tops. É quando algo acaba mal. Às vezes encontramos tops roídos pela culpa relativa a um acontecimento não-intencional. De qualquer forma, esta seria uma coisa boa do uso do sexo na cena: no mínimo, do lado dos homens isso introduziria descontinuidade e, com isso, limites —de certa forma— naturais.
Sara - Mas a cena não deve parar devido à ejaculação.

(1) Na Internet, o melhor lugar para S&M é "Alt.sex.bondage". Para conversas ao vivo no "Internet Relay Chat": "¤spanking" e "¤BD.SM".
(2) Sara nos deu uma série de sugestões literárias. Quem quiser, pode pedir gratuitamente o catálogo de Circlet Press, PO Box 15143, Boston, MA 02215, que apresenta uma boa seleção. No Brasil, foi certamente Wilma Azevedo ("A Vênus de Cetim") que quebrou o silêncio ou —pior— a mediocridade da produção.

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