São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Americanos querem desvincular o sexo da culpa

CONTARDO CALLIGARIS
ENVIADO ESPECIAL A COLUMBUS

1. Em geral, na convenção de Columbus —quer seja nos seminários, quer seja nas conversas— não se tratava nem de procurar nem de oferecer teorias. A questão era saber praticar bem. Interrogar as fantasias S&M ou B&D de fora, como se precisassem de explicação, é sempre —nisso a comunidade tem razão— em última instância, patologizar.
Mas ao menos uma teoria circulava e parecia fazer a unanimidade. Enunciada por Sara e Chris no começo de seu seminário introdutório e várias vezes retomada, ela dizia: o S&M é a melhor maneira de reviver os traumas da infância, lhes dando um final feliz. Ou seja: eis como transformar em prazer os abusos, as violações pelas quais passamos quando crianças. Eis a melhor maneira de ultrapassá-los: erotizando a violência sofrida, afirmamos nossa autonomia; os pais, os adultos abusaram de nós, mas soubemos transformar estes abusos em nosso gozo.
Os norte-americanos, pelo fundo empirista de sua cultura, parecem hoje sobretudo guardar, da psicanálise, a teoria do trauma. E mesmo assim, o trauma só é concebido aqui como violência real, nunca ou dificilmente como fantasia das próprias crianças. A consequência tragicômica deste entendimento limitado da teoria psicanalítica são os inúmeros processos retroativos contra pais e adultos pretensamente estupradores, aos quais dão lugar as terapias ditas de memória assistida. As pessoas são induzidas pelos terapeutas a reconstruir (segundo eles dizem) violências sofridas na infância, e acabam levando pais e avós para o tribunal. Quem escolhe o S&M não precisaria disto, pois conseguiria em sua vida sexual fazer uso erótico dos abusos que sofreu.
A teoria tem então a vantagem de integrar o S&M na ideologia nacional do momento. Ela poderia também não ser de todo errada, salvo que, para justificar o possível valor erótico do desamparo da primeira infância, não precisa supor ou inventar violências reais. Somos todos filhos de um desamparo inicial, onde éramos brinquedos nas mãos maternas ou adultas.
O que a teoria de Sara esquece, no entanto, é que o valor erótico do desamparo infantil não é um efeito —que seria, aliás, inexplicável— dos eventuais abusos. Todos fomos (ou gostaríamos de tr sido), quando bebês, um brinquedo impotente nas mãos maternas. Se esta idéia parece ainda excitar o adulto, não é por paixão dos abusos ou do desamparo. É porque imaginamos que o brinquedo que fomos devia satisfazer singularmente a mãe que com ele brincava. Teríamos sido em suma, idealmente, uma vez na vida, o fetiche perfeito, o objeto adequado da satisfação de nosso primeiro outro.
É desta matriz comum do desejo que o S&M tira sua força. É ela que justifica o sucesso do S&M ao qual Edward faz alusão: bem além dos limites da comunidade, o S&M funciona como fonte fantasmática universal. Um pouco de dominação e submissão cabem e funcionam em cada quarto baunilha.
2. Uma mulher quase nua, de saltos altíssimos, de olhos vendados, amordaçada, amarrada do pescoço aos pés de tal forma que lhe seja impossível tanto abrir ou estender os braços quanto procurar um equilíbrio melhor afastando as pernas. Um toque é suficiente para que caia ruinosamente. Seu "mestre" a deixa cada vez gemer de terror despencando, antes de parar sua queda no último momento.
Um homem, feminilizado por um espartilho brilhante, amarrado de tal forma que só consegue avançar ajoelhado, de olhos vendados e amordaçado, está perdido no meio da pista de dança. No barulho da música, das conversas, e das danças só presta seu ouvido para o leve tilintar de uma campainha. Sua dona, se desloca na sala e assim o chama, lhe manifestando para onde ele deve se dirigir.
São jogos de abandono, de total e concentrada atenção ao querer do outro. São jogos de desamparo. Um goza de ser um brinquedo nas mãos do outro e o outro goza realizando, fazendo existir o brinquedo. Os dois, dominado e dominador, gozam de fato da mesma coisa: do brinquedo. Evocar e produzir a ilusão que se possa ser brinquedo, ou seja objeto da satisfação do outro, é matéria erótica para quase todos.
A perplexidade surge para nós, quando o jogo se torna exclusivo; ou seja, quando as relações propriamente sexuais são abandonadas. Sem as quedas de tesão produzidas pelas ejaculações, sem a penetração, sem os fracassos do sexo que lembram a cada instante que não há na verdade brinquedo perfeito, sem tudo isso, o brinquedo e o brincar ameaçam ocupar o terreno da realidade toda.
A fantasia sexual pode valer 24 horas vezes sete dias, pode se estender em estilo de vida privada e profissional, quando ela não depende mais do desejo dos sujeitos. Ela deve então passar a depender de objetos externos, concretos, fetiches instituídos, açoites e outros.
A ilusão não é mais que se possa ser brinquedo dos outros, mas que haja sempre, ao alcance da mão, o brinquedo perfeito, aquele que satisfaz toda falha. De repente, no lugar da excitação, o que nos vem é a angústia. E fugimos no meio de uma tarde para visitar Columbus. Acabamos fazendo compras inúteis em uma loja de atacado. Talvez precisássemos confirmar que os objetos são todos fetiches, mas —como mostra a volubilidade do consumo— são todos fetiches fracassados. Aliás, a loja em questão foi (por acaso naturalmente) J.C. Penney's. Leiam em voz alta para entender a ironia da escolha.
3. Todos repetem: nada de drogas, nem de álcool, quando se brinca. É um apelo à responsabilidade. O jogo é pesado demais para que se corra o risco de perder o controle. E acrescentam: o S&M é já por si só uma experiência que altera suficientemente a mente.
A alteração verdadeira não é o abandono ao outro ou a ebriedade da potência que faz do outro um brinquedo. A alteração parece começar quando o fetiche não é mais o parceiro, mas é propriamente um objeto, quando o brinquedo não é o escravo, mas seu colar, sua corrente. Sara nos falam que, na NLA, há pessoas para quem o couro basta. E Athena, querendo explicar porque os cânones da beleza física seriam menos significativos na comunidade S&M, diz: a beleza está no "bondage" nas amarras. Um palestrante exclama: "So many toys, so little time" —tantos brinquedos e tão pouco tempo—! A referência não é aos parceiros, mas a panóplia dos objetos.
4. Nos últimos anos, as convenções dos estilos de vida alternativos se multiplicam nos Estados Unidos. Assim como se multiplicam seus órgãos de imprensa. Centenas, às vezes milhares de pessoas se reúnem para um fim de semana, em um grande hotel, exatamente como aconteceu em Columbus. São momentos de vida comunitária das pessoas que ambicionam um estilo de vida particular, é a oportunidade de viver segundo os cânones de seu estilo, abertamente, societariamente, pelo menos durante dois ou três dias.
Isto não concerne apenas as orientações sexuais ditas desviantes. Por exemplo, a Sociedade para Criar Anacronismos reúne os apaixonados dos tempos medievais que podem assim, no conforto de um grande hotel, passear livremente de malhas de ferro, espadas e armaduras, durante alguns dias. Há uma necessidade dupla: de poder, por uma vez, não mentir e de poder encontrar um olhar que não seja de exclusão. A esta necessidade respondem as convenções.
Não mentir é um imperativo americano. A tese de Lionel Trilling ("Sincerity and Authenticity") vale ainda. Na sociedade individualista realizada, onde nada em princípio marca e distingue indivíduos iguais, mentir é imperdoável. Não basta poder praticar suas fantasias em quartos, precisa poder expressá-la publicamente.
Facilmente, por exemplo, um indivíduo de outra cultura passará a vida inteira indo para seu escritório de cinta-liga e meia de náilon por baixo das calças, e achará neste segredo cotidiano uma das razões de seu gozo. O segredo, ao contrário, é nos EUA sofrimento, mentira forçada, culpada e dificilmente erotizada. A sociedade americana poderá até vir a ser a mais libertária de todas, mas nunca será uma sociedade libertina.
A sinceridade, como imperativo social, vai junto com a esperança, se não a necessidade de encontrar nos outros um sinal de aprovação. Pois, se precisa falar, melhor não encarar a fogueira.
Por isso as convenções. Por isso também, uma facilidade para falar de seus desejos e fantasias que surpreende o interlocutor, por isso —apesar do medo de ser descoberto(a) e ostracizado(a)— a complacência com a câmara fotográfica.
Por isso também, e sobretudo pelo intenso pedido de serem reconhecidos como semelhantes, a dificuldade (nossa) em desdobrar uma interpretação que de qualquer forma lhes negaria o que eles nos pediriam.
5. Levar a privacidade para praça pública era um projeto radical dos anos 60, justamente libertários. E o espírito dos 60 também estava presente em Columbus, simbolizado pela pequena Darcy nos corredores da convenção.
Já há um certo tempo, deu para constatar que as melhores intenções nem sempre garantem os resultados. É possível, por exemplo, que, pelo caminho da constituição de "estilos de vida" e de "comunidades" acabe se preparando uma particularização do desejo sexual tão rigorosa e constrangedora quanto as velhas categorias da psicopatologia sexual. Você são couro, borracha ou látex? Pois é, para continuar nos tecidos, conhecemos pessoas que são veludo, outras que são tafetá: terão que encontrar sua comunidade? Ou existe um espaço para a singularidade dos desejos?
Perto da meia-noite da véspera da viagem a Columbus, fomos fazer compras no supermercado 24 horas perto de casa, em Nova York. No local quase deserto, alguns homens de negócios, ainda de pasta na mão, compravam sozinhos comida congelada. Um casal de mulheres brincava como adolescentes de comprar ovinhos Kinder, e gritavam ao descobrir cada vez uma surpresa demente.
A solidão urbana ardia na garganta. Era evidente que "para um pouco de amor", todos dariam "qualquer coisa". E a posteriori a lembrança parece situar uma curiosa alternativa: entre o desejo errante das noites da cidade e a domesticação "convencional" (o adjetivo vem de convenção, não é?)
6. Todos os nossos interlocutores evocaram a culpa como culpada. A sociedade americana seria, pela origem puritana, uma sociedade atormentada e a culpa mataria o desejo: o drama de Chris evocado por Sara fala por todos.
Mas a convenção de Columbus diz ainda outra coisa. A culpa, todos conhecemos. Por sermos de uma cultura católica, não somos desculpados, ao contrário. A diferença entre nós e os americanos talvez não seja tanto o hiato entre os culpados e os pecadores de coração leve e pouca consciência.
A verdadeira diferença talvez seja que a culpa é, para os americanos, menos tolerável do que para nós. Precisam ser desculpados. Com ela convivem mal. Talvez consigam, convenção após convenção, desculpabilizar o sexo.
Resta saber se, livre de qualquer culpa, validado por uma comunidade festiva, o sexo tem a mesma significação e a mesma graça.

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