São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Dólares aliviam agonia do regime em Cuba

JORGE CASTAÑEDA
EM HAVANA

Alguns anos atrás Albert O. Hirschman formulou a idéia de "saída e voz", a respeito de Berlim e da Alemanha orientais e dos paradoxos provocados pela emigração ao Ocidente no comportamento político alemão. Segundo o pensador, radicado em Princeton, EUA, a possibilidade de "saídas", por limitada que estivesse pelo muro de Berlim, atuava até certo ponto com um efeito intensamente proporcional à propensão "à voz", isto é, à atividade política interna de oposição.
A possibilidade de sair limita a inclinação a protestar: quem tem esperanças de partir, e quem parte, reclama menos. Segundo Hirschman, a hemorragia humana que se deu durante anos, do lado oriental para o ocidental, teve muito a ver com a sobrevivência do regime comunista alemão oriental durante quase meio século, sob condições terrivelmente adversas.
A teoria de Hirschman parece aplicar-se perfeitamente a Cuba, desde o início de sua revolução, 35 anos atrás, até hoje. Sabe-se que os primeiros êxodos da classe rica e média privaram o novo regime da maioria dos proselitistas da ilha, mas também de uma oposição interna que teve que resignar-se a conspirar em Miami. Depois veio a ponte aérea de Camagüey, que abrangeu setores ligeiramente mais populares: brancos e urbanos, sem dúvida, mas menos acomodados que os dos primeiros meses. Mais tarde, em 1980, a maré humana de Mariel custou a Jimmy Carter sua reeleição para a Casa Branca, mas proporcionou ao governo de Fidel Castro, que já durava 20 anos, uma trégua e uma margem de tranquilidade que, de outro modo, não teria podido desfrutar. Em 1994, durante o ano indubitavelmente mais difícil da revolução (ou do que resta dela), a odisséia dos balseiros, saindo de Cojimar e do próprio cais de Havana, permitiu a Fidel Castro consertar os estragos provocados pelo " Habanaço" de 5 de agosto e recuperar sua capacidade de manobra. Sem a perene habilidade política do Comandante, os balseiros talvez tivessem afundado o regime; mas sem eles, Fidel Castro talvez tivesse enfrentado sua crise final.
A partida de várias dezenas de milhares de cubanos, em sua maioria habitantes da capital, muitos dos quais morreram no caminho (afirma-se, sem maiores discussões, que só dois em cada três sobreviveram), desativou a oposição ao regime castrista. Não tanto pelo fato de os ativistas terem partido; estes, pelo contrário, optaram por permanecer na ilha, salvo aqueles que já estavam presos e que foram libertados inesperadamente. A distensão se produziu por três razões principais. Em primeiro lugar, aqueles que embarcaram com destino à Flórida tendiam a ser os mais hostis ao governo, os mais desesperados, os mais agressivos; parte do ódio terminou em Guantánamo. Em segundo lugar, ao obrigar os EUA a reabrirem uma válvula de escape migratório legal, por pequena que fosse, criou-se a esperança, entre os que não partiram, de poder fazê-lo no futuro imediato. Vistos, familiares, recomendações e sorte: se alguns podem sair, todos podem ter a esperança de fazê-lo também. E, por último, os balseiros reduziram a oposição interna: diante da raiva e do desespero de jovens dispostos a enfrentar tubarões, mar revolto e um sol abrasador, os defensores social-democratas dos direitos humanos faziam pálida figura.
Saída em lugar de voz; emigrar em lugar de protestar: eis uma primeira explicação da evidente diminuição das tensões em Cuba, e da melhoria —muito relativa, sem dúvida— que se percebe no estado de ânimo dos habitantes de Havana. Se a isso se soma o efeito de algumas reformas econômicas, compreende-se porque as últimas horas de Fidel Castro ainda não soaram e ainda perdura um regime que muitos davam por morto há dois anos, ou há três décadas.
A reabertura das feiras de artesãos e camponeses, ou agromercados, como são agora conhecidos, juntamente com a autorização do exercício de profissões independentes —encanadores, eletricistas, mecânicos, pintores etc.— e a tolerância diante do surgimento de bares e restaurantes semi-clandestinos, surtiu o efeito esperado pelos economistas. O sacrossanto mercado aumenta a disponibilidade de bens e serviços: a demanda gera sua própria oferta, quando são eliminados os empecilhos e as restrições antes vigentes. Hoje há frutas e verduras, um pouco de carne e arroz, frango e ovos à venda nos agromercados de Havana. Outra coisa é o que custam esses produtos: muito em pesos cubanos, à luz do salário médio, mas menos do que custavam anteriormente no mercado negro.
Este é o "x" da questão. Em dólares, os produtos à venda nos agromercados ou nas lojas especiais não são caros; alguns são francamente baratos. Nem todos os cubanos dispõem de dólares e a divisão entre os que possuem divisas e os que não as possuem constitui hoje uma das principais fontes de desigualdade em Cuba. Mas entre as remessas familiares de Miami, o turismo (gorjetas, prostituição, pequenos serviços), a comunidade estrangeira —de negócios, diplomática etc.— radicada em Havana e as economias guardadas debaixo do colchão por muitos cubanos ao longo dos anos, há mais dólares do que se esperava. O surgimento de bens e serviços compráveis com pesos e a legalização da posse de dólares atuaram juntos para revalorizar a moeda cubana no mercado negro, de quase 100 por dólar, no ano passado, a 40 hoje. O mercado funciona, mesmo sob o socialismo balseiro à deriva.
Só que as soluções são problemas, como Fidel Castro sabe melhor do que ninguém. Quando os dólares começam a circular na economia real, o Estado começa a inventar maneiras de captá-los —impostos, contas em dólares, juros pagáveis em dólares. Os cubanos não precisam de dólares, para eles servem os pesos; mas o Estado precisa deles para importar tudo que a ilha não produz. Aconteceu na Polônia no início dos anos 80, apesar de toda a desconfiança do mundo —os detentores de dólares começam a depositá-los no sistema bancário, e o Estado começa a gastá-los. Enquanto os poupadores não pedirem seus dólares todos ao mesmo tempo, o mecanismo funciona. Quando os demônios do pânico e da desconfiança se soltam, é o fim do mundo. Eduard Gierek em 1980, José López Portillo em 1982, as autoridades financeiras argentinas hoje, Ernesto Zedillo desde 20 de dezembro, todos viveram isso na própria carne; devolver a todos uma divisa estrangeira que já foi gasta não é apenas impossível. É absurdo.
A diferença é que hoje, em Cuba, esta opção compra tempo, e é disso que Fidel Castro mais precisa: tempo para terminar sua vida em paz, em sua própria cama, em seu próprio país; tempo para salvar a revolução do destino cataclísmico previsto por todos. Quem consegue fazê-lo, apesar de nove presidentes norte-americanos, de centenas de milhares de cubanos expatriados, de privações indescritíveis para milhões de cubanos em Cuba e de um desprezo infinito por toda democracia, escapa a qualquer prestação de contas. Não é uma façanha menor; para bem ou para mal, é uma das grandes proezas do século.

Tradução de Clara Allain

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