São Paulo, domingo, 26 de fevereiro de 1995
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Dona Joaninha e o Estado protetor

ANTONIO ERMÍRIO DE MORAES

Como faz todos os anos, a Dona Joaninha foi passar o Carnaval na casa de sua irmã em Guaratinguetá. Somadas as idades das duas, a coisa chega perto dos 150 anos. Mas ambas estão lúcidas, alertas e ativas. Prontas para dar palpites a qualquer tempo.
No telefonema de despedida —sim, porque quando ela vai para Guaratinguetá, nunca se sabe quando volta— fizemos uma boa hora das saudades. Afinal, fomos colegas de ginásio há mais de 50 anos. Desde garota, ela sempre gostou de Carnaval. Preparava-se o ano inteiro. Usava uma fantasia em cada dia. Não perdia um baile. Era o tempo em que as famílias e os vizinhos iam juntos aos salões, onde o máximo da ousadia era se apresentar com máscaras indecifráveis e espalhar, à traição, o friozinho dos lança-perfumes.
No meio da conversa, ela me disse estar sentindo que a vida no Brasil, neste ano e pela primeira vez, parece ter começado antes do Carnaval. O fato de o presidente da República ter tomado posse em janeiro, ao invés de março, deu o toque inicial nessa virada. Os anúncios das mudanças constitucionais pelos ministros do novo governo mantiveram a batida do novo ritmo. O mais surpreendente, porém, foi ver o Congresso tomar posse duas semanas antes do Carnaval e trabalhar!
De fato, no seu primeiro dia de sessão, os parlamentares deram um show, aprovando 12 medidas provisórias que estavam sentadas há meses nos gabinetes. Os novos congressistas já haviam anunciado a sua firme disposição de tudo fazer para resolver os problemas nacionais. Anunciaram e comprovaram que são capazes de aprovar projetos muito rapidamente — quando querem.
Todavia, depois do inusitado "surto trabalhista" da última terça-feira, a coisa parece ter esfriado. Não desanimemos. Afinal, o Carnaval estava chegando para permitir o merecido descanso.
Os parlamentares recentemente diplomados merecem o mais generoso voto de confiança da nação. Sobre eles pesa uma responsabilidade imensa e difícil. Imensa porque, sem mudanças constitucionais, não há planos econômicos que vinguem. Difícil porque fazer mudanças impopulares requer uma pedagogia especial —a pedagogia do antipopulismo— que nunca foi muito cultivada entre nós.
Lembrei tudo isso a Joaninha. E, quando falei em pedagogia, ela, que foi professora por mais de 40 anos —daquelas que ficava dentro da sala de aula e não nas infindáveis reuniões de planejamento— foi como acender um fósforo no palheiro. Desandou a falar sem parar pondo-se, finalmente, à disposição dos parlamentares para ajudá-los a usar as técnicas que ela sempre usou, com sucesso, quando tinha que ensinar aos seus alunos algumas lições amargas, penosas e indigestas sem que eles tivessem a menor disposição de aprendê-las.
De fato, a grande tarefa é explicar bem ao povo o porque teremos de contrariar a tradicional noção de um Estado pretensamente protetor e paternal que, na prática, sempre foi o inverso. Desejei a Joaninha um bom Carnaval, recomendando-lhe parcimônia no sambar —pois, com seus 120 quilos, não há coluna que aguente.

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